A fome humana

Adoro receber pessoas em casa: nem sempre e não com tanta regularidade. Mas quando recebo a entrega é total, de coração quente e peito aberto. E prefiro que os encontros sejam combinados, pois não gosto de visitas inesperadas por um único motivo: preciso preparar a mim e ao ambiente, além de me imiscuir de um estado interno de expectativa e de espera para a abertura aos outros. É uma espécie de ritual.

E nesse ritual não pode faltar a comida. Tenho essa necessidade de nutrir quem vem até mim como se não houvesse separação entre afeto e alimento. Como se o desejo mais genuinamente humano permanecesse o mesmo de quando nascemos aos gritos até sermos acalmados junto ao seio da mãe.

Quando alguém se anuncia importa-me saber seu gosto gastronômico para que o providencie. A fome que faz uma pessoa se aproximar de outra geralmente não é a de pão, bem sei. E é por saber que entre nós há um espaço impreenchível, um lugar intocável, lacunoso, uma fome que não se sacia, que devo tentar amenizá-la com a temporária satisfação fornecida pelo alimento.

Talvez “eu te amo” não expresse tanto amor como “eu cozinhei o seu prato preferido” ou “comprei todos os tipos de queijo do seu agrado”, “fui em todos os mercados da cidade atrás do vinho de que mais gosta”, “passei horas na fila do açougue para trazer a melhor carne do churrasco que preparei para você”.

Nutrir é ato de amor por excelência. Amo, portanto levo a hóstia à boca do outro. A hóstia preparada não com o trigo de minha preferência, mas com o sabor que mais apraz o paladar de quem a recebe.

Menino do rio

Ele entrou na sala bonito, alto, esguio e bem trajado. Seu porte jamais seria imperceptível mesmo em face das mais distraídas. Eu o vi logo que despontou e não só vi como passei a bolar um plano para aproximar-me.

Eram muitas as mulheres, algumas bem mais bonitas, o que em nada me intimidou, antes disparou meu senso de disputa. Uma disputa silenciosa, mas que prenunciava o gosto da vitória. Ele se renderia. Como? Ainda não sabia, mas sabia.

Sentava na primeira fila. A matéria que ministrava não só era a que mais conhecia, como também a que mais gostava. Eu me faria notar. Caprichava na aparência, maquiava levemente o rosto, abusava das roupas pretas, cruzava as pernas, jogava os cabelos. Olhava-o, desviava o olhar. E quando feitas as perguntas sobre o conteúdo da aula, era das únicas que sabia responder. Ele se maravilhava a ponto de me dizer mais tarde: “Você é a melhor aluna que tive durante toda minha vida de professor.”

Mas o plano se estendia além dos limites das paredes do colégio. Ele precisava se lembrar de mim noutro lugar que não fosse aquele recinto formal. Precisaria ter tempo e espaço para pensar.

Foi aí que comecei a mandar mensagens para sanar dúvidas que não tinha a respeito da aula. Numa dessas, ele respondeu num tom que indicava a abertura necessária: “Só responderei se ganhar bombons”. É claro que levei os bombons no outro dia. E é claro que nossa relação passou a ser um doce.

Aninha pra cá, Aninha pra lá, prof. pr’acolá. Podia ver no rosto de algumas colegas o desprezo e a irritação. Uma delas chegou a insinuar: “Nossa! Mas ele só fala o seu nome durante as aulas.” Fingi de desentendida e disse que o motivo era porque sabia bastante a matéria.

Dava-lhe carona, almoçávamos juntos, ficávamos no hall do hotel estudando e discutindo assuntos. Assim que o avião pousava, ele dizia: “Cheguei!” e me abraçava jogando-me ao alto para compensar a diferença de altura.

Em nossos passeios, cantávamos, ríamos, nos divertíamos feito duas crianças que brincam ou dois adolescentes que muito se querem bem.

E eis que a temporada das aulas chegou ao fim, ele retornou para a cidade onde morava e um oceano inteiro passou a nos separar.

Certo dia me comunicou que me faria uma visita, pois precisava resolver questões profissionais que ficaram pendentes. Fui buscá-lo no aeroporto, não com o entusiasmo de antes, levei-o para almoçar, depois ao tribunal. Ao término, quis ir à minha casa sob o argumento de que precisava descansar. O voo de volta estava marcado para a tarde do mesmo dia.

Mas o que ele fez foi tentar uma aproximação maior. Não me lembro mais como me desviei do seu chamado. Apenas me esquivei. Enquanto descansava na minha cama, eu assistia no sofá da sala. Quando acordou pediu que o levasse ao aeroporto.

Despedimo-nos e, desta vez, o movimento de me abraçar levantando-me para o alto foi muito mais leve e sutil. Estava dez quilos mais magra que da penúltima vez em que nos vimos.

Pedi que me avisasse quando chegasse ao destino. Assim o fez e, antes de desligar o telefone, pediu permissão para me fazer uma pergunta. Consenti.

“Aninha, por que você não quis nada comigo?”

Desconversei. Devo ter falado que não estava no melhor dos meus dias.

Ele sentenciou: “Deve ter sido efeito dos seus quilos a menos. Eu preferia muito mais a gordinha.”

Na hora, sorrimos. Depois, ele simplesmente sumiu.

Presente

Eu não sabia o que fazer diante daquele convite. Quer dizer, sabia-o bem. Apenas negar. Dizer que não estava a fim. Mas não quis ser tão direta. Inventei que já tinha compromisso marcado para a noite. No passado, jamais teria agido assim. Aceitaria de pronto. Diria sim, sem pensar. E disse. No passado, eu disse sim todas as vezes. Mas agora eram outros os objetos dos meus desejos. E ele não estava entre eles como todos os outros que passaram já não estão.

Clarice Lispector diz: “Cada coisa tem um instante em que ela é.” Essa frase me remete à impossibilidade de reviver o que quer que seja. As coisas são o que são e apenas no momento em que são. Logo escapa, foge, deixa de ser e ficamos tão somente com a vaga lembrança de uma fumaça que se esvai.

Ele não era mais o mesmo. Eu, muito menos. Nem em aparência se parecia com aquele homem dos encontros de outrora. O charme cedeu ao tempo, a chama nos olhos foi substituída por um fiapo de luz que, para mim, não mais brilhava. Olhava-o e nada sentia. Meu braço roçou por acaso no dele e nada em mim se acendia. O que foi deixou de ser.

É preciso permitir que os instantes nos consumam, mergulhar em nossas paixões e amores com a entrega que o momento exige. Paixões e amores passam, e tudo passa. Nada trará o retorno do que se perdeu. É vã a tentativa de se apegar ou se prender ao que quer que tenha nos acontecido. E é injusto com quem somos agora nos furtar o agora em nome do que não é, nem pode ser.

Eu tenho essa queda de me dar totalmente às relações enquanto elas fervem, e até de fazer ferver. Mas quando sinto que ali não há espaço para mais nada que encante, emocione ou instigue um ao outro, vou-me embora sem voltar-me para trás, sem vontades, sem saudade.

Convites continuam sendo feitos diante da ilusão de quererem resgatar algo do passado. Nego todos. Estou entregue ao presente. Quero vivê-lo inteiramente e apaixonadamente, porque não sou nada boba. O que foi, foi. O que vier não sei como será. Mas hoje é hoje.

Desejo

Subia as escadas do santuário em direção a Jesus e a quem mais eu quisesse. O homem veio ao meu encontro a fim de me vender água. Recusei. O sol escaldante e sim! tinha aquela espécie de sede que nem todo o rio à frente seria capaz de aplacar. Não queria água e segui caminho.

A alguns passos me sentei debaixo de uma árvore para descansar e refrescar. Um mineiro puxou papo, ouvi por alguns minutos, pedi licença para me retirar e entrar na gruta. Fui até o santíssimo, toquei as vestes de Jesus, fiz uma prece à Nossa Senhora. No silêncio do coração o sagrado da vida que não pedi para ter e que é tanto e tudo.

Na saída, o mesmo homem insistia. Ah! Mal sabe ele, ou sabe? Não sei. Disse-lhe que não queria a água e ofereci-lhe ajuda. Não aceitou. Comprei. Ele me entregou duas garrafas; sentiu-se à vontade para conversar, se alongar comigo, e me disse ser bom vendedor, ter poder de persuasão. Respondi que sabia ou não teria me rendido.

Veio de São Paulo, tem formação em Administração, vende água todos os dias na frente da igreja e o dinheiro, “graças a Deus!” tem dado para viver. Disse não saber porque me contaria a história que se segue: alguém lhe pediu dinheiro emprestado, ele declarou que não tinha a quantidade exata, mas um valor menor que não emprestaria, daria. No outro dia, alguém lhe deu o triplo de dinheiro que havia doado. “Viu como funciona?” Compreendo: eu sei, eu sei.

Perguntou meu nome. Por alguns segundos pensei qual deles falaria. Decidi por Ana. “Sabe que Ana é Ana de frente para trás e de trás para frente? Você é sempre verdadeira.” Meus olhos se abriram por detrás dos óculos escuros. Sabe que já escrevi isso num de meus livros? “Você é escritora?” Gaguejei: Sim. E-u so-u.

“Posso falar algo sem más intenções?” Claro! “Tem uma música: “Cheia de charme, desejo enorme de se aventurar. Cheia de charme, desejo enorme de revolucionar”, cantou esse trecho para mim. “Essa música é para você.” E acrescentou: “Você tem brilho. É luminosa.”

Abri um largo sorriso e lhe estendi a mão em despedida.

Aventurar… Revolucionar… Sei que em segundos apreendeu minha alma.

E eu a dele.

O corpo

Ele me pergunta se estou bem. Respondo que estou tranquila, em paz. Ele vai mais fundo: “E como anda o coração?” ou “Como vai o coraçãozinho?”. Respondo: “Despedaçado, aos frangalhos. De quando quebrou nunca mais se juntou.”

Mas como é possível alguém estar em paz com o coração em pedaços? É que às vezes posso estar triste por dentro, mas meu corpo é sempre muito alegre.

Coisas de leitor

Lera todos os meus livros. Algumas vezes mandava mensagens sobre assuntos literários e outras coisas mais. Certa ocasião, questionou-me: “Seu marido não sente ciúmes do fato de você escrever?” Respondi um “acho que sim”, pois não falava embora revelasse em atitudes.

O leitor:

“Ele precisa entender que os leitores têm você na imaginação, mas é ele quem tem a escritora na cama.”

Deus e Os Outros

Eu gostaria de me encontrar com um Deus grande, tão imenso que só o ato de pensar nele me enchesse de suficiência. Porque se precisamos, se buscamos insistentemente e tanto a presença e o afeto dos Outros é porque Deus não nos basta.

Ou recusamos admitir que fazemos dos Outros nossos deuses, ou criamos um Deus que não foi o bastante para nos libertar dessa necessidade dos Outros.

Deus seria de fato o que dizemos que É se conseguíssemos ficar diante do nada só e somente com Ele. E se os Outros fossem os outros. E só!

Dar é pra quem sabe

Dar presente exige não apenas a vontade genuína de agradar ao outro, mas sobretudo certo grau de sensibilidade, perícia e técnica. Creio que aprimorei essa arte com um homem refinado. A primeira vez que nos vimos ele carregava uma sacola de tecido com foto e frase de minha escritora preferida, recheada com livros de belas e raras edições, além de outros cujos temas orbitavam a obra e a vida de Clarice Lispector. Não pude conter a alegria e a surpresa, nem esquecer jamais esse encontro. Sobre o que falamos naquele dia pouco me recordo, mas guardo cada presente com bastante amor, significado e zelo.

Durante os meses que tivemos contato foram muitos os objetos que recebi e todos eles, posso afirmar, carregavam um ponto de identificação comigo. O vinho de aniversário foi um Syrah, uva de que mais gosto, acompanhado de um cartão poético: “O ser busca outro ser, e ao conhecê-lo acha a razão de ser, já dividido. São dois em um: amor, sublime selo que à vida imprime cor, graça e sentido”.

Os demais livros, se não eram da Clarice, diziam respeito a algum assunto que me interessava no momento e sobre o qual comentava sem imaginar que dali a dias algo maravilhoso me seria entregue. Todos os presentes me continham, eram uma extensão de minha personalidade ou estavam destinados a fazer parte de um ser que em mim se faria.

Até mesmo as sugestões de leitura vinham ao encontro de meus anseios mudos. Leia “Grande Sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa, “Afinidades eletivas”, de Goethe…, dizia-me, livros que marcaram profundamente minha vida, que me impulsionaram a um salto de compreensão da natureza humana e que me ajudam na travessia de meus dias. Quando rememoro, impressiona-me a precisão com que me agradava. Nada que ganhei carece de sentido. Tudo era à exata medida de mim. Por meio de gestos, palavras e presentes fez-me vislumbrar algo que até então era aos meus olhos inalcançável. Por que me incitava a coisas tão grandiosas mesmo diante de minha timidez frente a ele?

Há pessoas que presenteiam com base naquilo que gostariam de receber. E quantas vezes eu própria devo ter feito o mesmo. Ele não. Saía de si como num transe para saber-se de mim. E como alegrava-me a ideia e a prova de que alguém me compreendia e sabia exatamente o que poderia constituir objeto de meu desejo – a conversa girava ao meu redor, e presenteava-me com tudo aquilo que me expandia a fim de que pudesse me tornar não o que era, mas o que imaginava que eu pudesse vir a ser.

E que presente melhor alguém pode receber do que uma voz a bradar: “Nunca deixe de ser você, por nada nem por ninguém. A primeira coisa que vou lhe pedir antes de estabelecermos qualquer relação é que você me prometa que jamais vai deixar de ser você.”

E antes que se perdesse em fantasias sobre mim tratei de revelar algo que supunha ser o pior de todos os defeitos e que poderia comprometer tudo o que pensava acerca de alguém que acabara de conhecer.

“Talvez eu seja a pessoa mais orgulhosa que você já viu na vida”.

Ele sorriu. “Mas é isso que você chama de defeito? Achei que fosse coisa grave e até me assustei com o que poderia dizer.” Quem sabe, para ele, como para Clarice, o orgulho seja apenas algo infantil. Embora mais tarde tenha sentido na pele que eu realmente o era, pois ao dar as costas não mais voltei.

Os presentes estão todos guardados e nem todo orgulho do mundo me levaria a desfazer deles. São meus. Sou eus.

Lembro-me de uma aula de Psicanálise, em que a professora narrou um fato curioso sobre um neurótico. Ele morava numa casa parcialmente destruída cuja reforma foi empreendida pelas pessoas que o atendiam no centro médico. A expectativa era de que o morador adorasse a “nova” residência, por a terem tornado mais bela e habitável. No entanto, o homem ficou nervoso ao deparar com a mudança; em poucos dias quebrou as paredes para que o local se parecesse com o de antes da intervenção. Ao ser instado a revelar o motivo disse que a casa como a deixaram nem mesmo parecia que era dele. Queria de volta aquilo com que se identificava, a beleza aos próprios olhos, sua identidade exposta no que lhe pertencia.

Talvez todo esse desgaste seria evitado caso perguntassem ao homem se gostaria que reformassem o lugar onde morava. Presumo que talvez a melhor maneira de dar algo a alguém seja questionar sobre o que mais lhe agrada, com o que se identifica ou prestar atenção ao que gosta ou quer.

“Os homens passam, os diamantes ficam”, dizia a sedutora Marilyn Monroe.

Que cada um tenha a alegria e o prazer de receber de nós os diamantes que considerem de maior valor, alcance e sentido. Imperecível!

Mas cá pra nós: dar de verdade, meu amor, é só para quem sabe.

O mal-estar na mulher moderna

Nas suas memórias, a escritora, filósofa e ativista francesa Simone de Beauvoir declara que decidiu não ter filhos em nome da liberdade de que dispunha, da sensação de bastar-se a si mesma e do fato de um outro não caber dentro do seu principal projeto de vida – a criação de uma obra que afirmaria sua existência neste mundo e que, de algum modo, o beneficiaria.

Não restam dúvidas de que ela conseguiu sagrar-se vitoriosa naquilo que se propôs, mas gosto de enfatizar que não foi sem custo. Atingir aquilo que se quer não necessariamente significa consegui-lo sem percalços ou consequências. Ela pagou um preço, entretanto a importância de sua vida e obra é inegável. Não se pode conceber a mulher moderna sem a influência do pensamento de Simone.

Crescida em ambiente burguês, numa época em que à mulher era relegado papel secundário, não desejou para si as funções de dona de casa e mãe, muito menos o confinamento doméstico a que outras estavam submetidas. Escolheu a Filosofia como bússola, uma vez que a racionalidade era o principal meio de suplantar crenças e limitações repassadas pela religião a que a família se apegava e se utilizava para inibir e proibir.

Simone perdera a fé num ser superior de quem se originaria nossa essência. Para ela, não somos seres marcados para fins definidos. A vida se constitui à medida de nossas escolhas. A existência precede a essência.

Decidida a dar à sua vida o contorno dos próprios anseios e pensamentos, abriu mão da maternidade – de procriar – para unicamente criar.

Ao acompanhar o raciocínio da filósofa quanto ao aspecto da escolha pela não-maternidade percebe-se o entendimento, que compartilho, referente ao tempo, à disposição e à renúncia necessários ao empenho para se formar um ser que nasce totalmente frágil e inteiramente dependente. Um ser cujo psiquismo vai se estruturar, em princípio, a partir dos pais. Filho é uma espécie de projeto que não se terceiriza sem danos. Não posso pedir que alguém conclua um livro que comecei a escrever sem prejuízo da integridade e da fidedignidade de minhas ideias.

Não se pode estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, desempenhando-os com igual maestria, e para estar no lugar único de escritora e filósofa pensantes Simone abriu mão de todo o resto. Radical? Extrema? Que seja! Inegavelmente fiel ao ideal de vida que estabeleceu para si.

Aqui insiro o “O mal-estar na mulher”, expressão furtada do pai da Psicanálise. Se Simone de Beauvoir abriu mão de muitas coisas para criar uma vasta obra que conferiria mais liberdade e independência às mulheres, a mulher moderna não está disposta a abrir mão de nada em meio às inúmeras possibilidades de que dispõe. Ela é um faz-de-tudo, uma super poderosa que já não consegue mais disfarçar o próprio esgotamento e a culpa diante de filhos que exigem-na ao final de um dia cansativo de trabalho. Mais liberdade de escolha, não necessariamente satisfeita frente a tantas alternativas.

O que querem as mulheres? Freud, mesmo com extensa e profunda prática psicanalítica, quedou-se mudo: “Eis o grande mistério que não consegui resolver, apesar de meus trinta anos de pesquisa sobre a alma feminina: o que a mulher quer?”

Ouço repetidamente a frase: “Lugar de mulher é onde ela quiser.” Mas o que resta de alguém que deseja estar na empresa durante nove horas, na casa com os filhos, na cama com o marido, na academia de ginástica, no salão de beleza, nas aulas de mestrado e num barzinho tomando cerveja com as amigas? Tantas coisas para usufruir, um só corpo a dispor. Simone não pensaria duas vezes e responderia Freud: “Das outras mulheres, nada sei. Quanto a mim, quero escrever livros.”

Se me utilizo dela como exemplo de pessoa que percorreu via única não é com o fim de pressupor que a mulher deve vislumbrar apenas uma possibilidade ou de que não deve ocupar todos os espaços. Mas é preciso saber que diante do duplo ou múltiplo pode-se deparar com o sentimento de pura impotência, de que alguma coisa é sacrificada em prol de outra, como a delegação da educação dos filhos em nome da profissão, que muitas vezes vem acompanhada do sentimento de culpa ou da necessidade de compensação ou da entrega de presentes.

Numa entrevista, Laura Cardoso confessou que não acompanhou de perto o crescimento dos filhos, o que foi exercido pela avó das crianças. Para ela, absolutamente nada importava tanto quanto ser atriz. A profissão era o seu principal caminho de realização. Mas são poucas as que têm coragem de dizer e assumir que não se sentem realizadas na qualidade de mães. Algumas até o fazem com a ressalva que precede à queixa: “Amo meu filho, mas odeio a maternidade.”

A escritora Clarice Lispector escrevia no sofá de casa, com a máquina no colo, para que os filhos a interrompessem no momento que quisessem. Era uma maneira de amenizar a culpa por se dedicar a algo que não fosse eles. O mais velho foi incisivo: “Não quero que você escreva. Você é uma mãe.” Ela escreveu até o último suspiro.

Intitulo “O mal-estar na mulher” o visível cansaço das mulheres diante da imensa quantidade de tarefas e responsabilidades que chamaram para si, somadas às exigências da função de mãe. Faz parte do discurso de muitas a declaração de que podem ser inúmeras coisas a um só tempo, o que soa quase como pedido tácito de aprovação ou necessidade de convencer a si mesmas e aos outros de que a independência e a liberdade duramente conquistadas somente se legitimam num rol variado e extenso de atividades simultaneamente desenvolvidas. Como se precisassem apresentar inventário de ações com vistas a assegurar a manutenção de direitos, o reconhecimento de capacidades e, acima de tudo, o merecimento.

A filósofa Maria de Lourdes Gouveia reflete que a mulher moderna é tributária do amor livre, do divórcio, mas também de uma geração que acumulou fazeres. Esta mulher convive com as conquistas, pode trabalhar, o que é perfeitamente desejável, mas ao mesmo tempo não abriu mão de cuidar da casa, dos filhos, da família, das crianças, levá-las ao psicólogo, à natação. Enfim, não abriram mão de todos os deveres maternos e ainda acrescentaram deveres a esses deveres. No entanto, o tempo continua o mesmo; o dia tem as mesmas vinte e quatro horas.

Eis a questão: como fica o olhar interno dessa mulher para ela mesma? O feminino encontra-se existencialmente compromissado e existencialmente dividido. E não é uma divisão dual, ou seja, ser dona de casa e profissional. É ser dona de casa, profissional, orientadora, acompanhadora… mil coisas. As tarefas femininas se pulverizaram e as mulheres se compromissaram com todas essas funções.

Pergunta-se: E o desejo? E o feminino expandido? E a delícia de ser quem é? E o contato consigo? E o mínimo de reflexão sobre esse si mesmo? Sobre essa pessoa que adita o seu interior? E o convívio com a criança e a adolescente que se é? E os seus sonhos de adolescência? E os seus desejos de jovem e adulto? Como é possível administrar tudo isso ao mesmo tempo? Porque o desejo, essa icônica energia expandida, está presente no mundo e também é histórico. Onde fica a mulher em meio a essa multiplicidade de tarefas e de desejos? Ela se multiplica com que fundamento? Onde encontra apoio e ajuda?

Por fim, a professora Maria de Lourdes conclui que o desejo feminino atual é profundamente solitário. As mulheres estão divididas, pulverizadas nos seus objetos e nem sempre encontram apoio ou energia para alavancar o instrumento de que se utiliza, o próprio corpo, que se transforma tão somente num objeto a serviço do Outro. Um corpo que se quer padronizado e que, a despeito de atender todas as exigências, não se individualiza, não sabe de si. Na sua visão, as mulheres se coletivizaram, acrescento, se escravizaram, de modo que deixaram de ser pessoas conscientes de si e de conviverem consigo.

Foi para não se perder de si mesma e do principal e único projeto de vida – escrever – que Simone de Beauvoir abriu mão da multiplicidade de afazeres. Mas na unicidade do seu caminho triunfou implacável.

Ela não se definiu como burguesa, religiosa, ateia, mulher, mãe, professora, filósofa. Não se perdeu na tentativa de corresponder às várias funções que fragmentam e dilaceram a individualidade. Nem mesmo se confundia com o próprio nome.

É como se a ouvisse dizer “eu sou eu”, e se isso não bastar, nada mais basta.

Cura da feiura

A verdade é que não consigo ou mesmo não tenho intenção de acompanhar o ritmo acelerado de minha mãe. De quando acorda à hora de dormir, ela arruma mil e uma tarefas, resolve pendências, inventa o que fazer e ainda lhe sobra disposição para academia, caminhada e mais coisas que lhe ocupam o dia que, se em outros lugares tem vinte e quatro horas, em Coribe totaliza quarenta e oito.

O que gosto de fazer quando estou lá é ver o tempo não passar. Se o tédio ameaça essa falta do que fazer, induzindo-me a imaginar que os minutos poderiam passar mais depressa, penso: mas para quê? Leio, tomo café, converso um pouco, dou risada, vejo vídeos. Às onze, o almoço está pronto. Leio, passeio pela cidade de ruas e pessoas iguais, descanso; descanso mais um pouco; penso em nada, penso em tudo. Deito-me, olho para o teto, levanto-me. Em ritmo lento vou acontecendo.

A vida me aquietou, me amansou a ponto de às vezes minha mãe dizer: “Você está é rezada. Vou levar você até Seu Messias para te benzer.” Não sou boba de recusar e sigo com ela até o benzedor crente de que ele retirará os males que pesam o meu corpo e que me fazem cultivar certa preguiça. Esta, se já não fosse pecado capital, boa coisa não seria; bem sei.

“Quem está colocando esse olho gordo em cima de você?”, pergunta Seu Messias após terminar o ritual.

Realmente, não sei.

Enquanto conversamos sobre a vida, eis que aparece uma pessoa à porta. Ao perceber nossa presença intimida-se. Seu Messias a olha; quieto, pensativo, não faz a menor questão de mandá-la entrar. Ela dá meia volta sem dizer palavra.

Diz-nos que aquela mulher vai à sua procura todo o tempo. Para quê? Pois que ele ainda não aprendeu a reza para curar feiura. Caímos na gargalhada, pois por essa jamais esperávamos.

Ao nos despedirmos, Seu Messias pede que eu volte numa sexta-feira a fim de fechar meu corpo para que nada de ruim me atinja. Esse pedido muito me alegra, é claro! É sinal de que o meu mal é curável.

E também sou muito vaidosa para admitir a feiura. Caso fosse por ela acometida, moveria céus e terra para livrar-me. Ou imitaria essa mulher que planta os pés na casa de Seu Messias. Mas que ele teria de dar jeito, teria.

Ah se teria!