Nas suas memórias, a escritora, filósofa e ativista francesa Simone de Beauvoir declara que decidiu não ter filhos em nome da liberdade de que dispunha, da sensação de bastar-se a si mesma e do fato de um outro não caber dentro do seu principal projeto de vida – a criação de uma obra que afirmaria sua existência neste mundo e que, de algum modo, o beneficiaria.
Não restam dúvidas de que ela conseguiu sagrar-se vitoriosa naquilo que se propôs, mas gosto de enfatizar que não foi sem custo. Atingir aquilo que se quer não necessariamente significa consegui-lo sem percalços ou consequências. Ela pagou um preço, entretanto a importância de sua vida e obra é inegável. Não se pode conceber a mulher moderna sem a influência do pensamento de Simone.
Crescida em ambiente burguês, numa época em que à mulher era relegado papel secundário, não desejou para si as funções de dona de casa e mãe, muito menos o confinamento doméstico a que outras estavam submetidas. Escolheu a Filosofia como bússola, uma vez que a racionalidade era o principal meio de suplantar crenças e limitações repassadas pela religião a que a família se apegava e se utilizava para inibir e proibir.
Simone perdera a fé num ser superior de quem se originaria nossa essência. Para ela, não somos seres marcados para fins definidos. A vida se constitui à medida de nossas escolhas. A existência precede a essência.
Decidida a dar à sua vida o contorno dos próprios anseios e pensamentos, abriu mão da maternidade – de procriar – para unicamente criar.
Ao acompanhar o raciocínio da filósofa quanto ao aspecto da escolha pela não-maternidade percebe-se o entendimento, que compartilho, referente ao tempo, à disposição e à renúncia necessários ao empenho para se formar um ser que nasce totalmente frágil e inteiramente dependente. Um ser cujo psiquismo vai se estruturar, em princípio, a partir dos pais. Filho é uma espécie de projeto que não se terceiriza sem danos. Não posso pedir que alguém conclua um livro que comecei a escrever sem prejuízo da integridade e da fidedignidade de minhas ideias.
Não se pode estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, desempenhando-os com igual maestria, e para estar no lugar único de escritora e filósofa pensantes Simone abriu mão de todo o resto. Radical? Extrema? Que seja! Inegavelmente fiel ao ideal de vida que estabeleceu para si.
Aqui insiro o “O mal-estar na mulher”, expressão furtada do pai da Psicanálise. Se Simone de Beauvoir abriu mão de muitas coisas para criar uma vasta obra que conferiria mais liberdade e independência às mulheres, a mulher moderna não está disposta a abrir mão de nada em meio às inúmeras possibilidades de que dispõe. Ela é um faz-de-tudo, uma super poderosa que já não consegue mais disfarçar o próprio esgotamento e a culpa diante de filhos que exigem-na ao final de um dia cansativo de trabalho. Mais liberdade de escolha, não necessariamente satisfeita frente a tantas alternativas.
O que querem as mulheres? Freud, mesmo com extensa e profunda prática psicanalítica, quedou-se mudo: “Eis o grande mistério que não consegui resolver, apesar de meus trinta anos de pesquisa sobre a alma feminina: o que a mulher quer?”
Ouço repetidamente a frase: “Lugar de mulher é onde ela quiser.” Mas o que resta de alguém que deseja estar na empresa durante nove horas, na casa com os filhos, na cama com o marido, na academia de ginástica, no salão de beleza, nas aulas de mestrado e num barzinho tomando cerveja com as amigas? Tantas coisas para usufruir, um só corpo a dispor. Simone não pensaria duas vezes e responderia Freud: “Das outras mulheres, nada sei. Quanto a mim, quero escrever livros.”
Se me utilizo dela como exemplo de pessoa que percorreu via única não é com o fim de pressupor que a mulher deve vislumbrar apenas uma possibilidade ou de que não deve ocupar todos os espaços. Mas é preciso saber que diante do duplo ou múltiplo pode-se deparar com o sentimento de pura impotência, de que alguma coisa é sacrificada em prol de outra, como a delegação da educação dos filhos em nome da profissão, que muitas vezes vem acompanhada do sentimento de culpa ou da necessidade de compensação ou da entrega de presentes.
Numa entrevista, Laura Cardoso confessou que não acompanhou de perto o crescimento dos filhos, o que foi exercido pela avó das crianças. Para ela, absolutamente nada importava tanto quanto ser atriz. A profissão era o seu principal caminho de realização. Mas são poucas as que têm coragem de dizer e assumir que não se sentem realizadas na qualidade de mães. Algumas até o fazem com a ressalva que precede à queixa: “Amo meu filho, mas odeio a maternidade.”
A escritora Clarice Lispector escrevia no sofá de casa, com a máquina no colo, para que os filhos a interrompessem no momento que quisessem. Era uma maneira de amenizar a culpa por se dedicar a algo que não fosse eles. O mais velho foi incisivo: “Não quero que você escreva. Você é uma mãe.” Ela escreveu até o último suspiro.
Intitulo “O mal-estar na mulher” o visível cansaço das mulheres diante da imensa quantidade de tarefas e responsabilidades que chamaram para si, somadas às exigências da função de mãe. Faz parte do discurso de muitas a declaração de que podem ser inúmeras coisas a um só tempo, o que soa quase como pedido tácito de aprovação ou necessidade de convencer a si mesmas e aos outros de que a independência e a liberdade duramente conquistadas somente se legitimam num rol variado e extenso de atividades simultaneamente desenvolvidas. Como se precisassem apresentar inventário de ações com vistas a assegurar a manutenção de direitos, o reconhecimento de capacidades e, acima de tudo, o merecimento.
A filósofa Maria de Lourdes Gouveia reflete que a mulher moderna é tributária do amor livre, do divórcio, mas também de uma geração que acumulou fazeres. Esta mulher convive com as conquistas, pode trabalhar, o que é perfeitamente desejável, mas ao mesmo tempo não abriu mão de cuidar da casa, dos filhos, da família, das crianças, levá-las ao psicólogo, à natação. Enfim, não abriram mão de todos os deveres maternos e ainda acrescentaram deveres a esses deveres. No entanto, o tempo continua o mesmo; o dia tem as mesmas vinte e quatro horas.
Eis a questão: como fica o olhar interno dessa mulher para ela mesma? O feminino encontra-se existencialmente compromissado e existencialmente dividido. E não é uma divisão dual, ou seja, ser dona de casa e profissional. É ser dona de casa, profissional, orientadora, acompanhadora… mil coisas. As tarefas femininas se pulverizaram e as mulheres se compromissaram com todas essas funções.
Pergunta-se: E o desejo? E o feminino expandido? E a delícia de ser quem é? E o contato consigo? E o mínimo de reflexão sobre esse si mesmo? Sobre essa pessoa que adita o seu interior? E o convívio com a criança e a adolescente que se é? E os seus sonhos de adolescência? E os seus desejos de jovem e adulto? Como é possível administrar tudo isso ao mesmo tempo? Porque o desejo, essa icônica energia expandida, está presente no mundo e também é histórico. Onde fica a mulher em meio a essa multiplicidade de tarefas e de desejos? Ela se multiplica com que fundamento? Onde encontra apoio e ajuda?
Por fim, a professora Maria de Lourdes conclui que o desejo feminino atual é profundamente solitário. As mulheres estão divididas, pulverizadas nos seus objetos e nem sempre encontram apoio ou energia para alavancar o instrumento de que se utiliza, o próprio corpo, que se transforma tão somente num objeto a serviço do Outro. Um corpo que se quer padronizado e que, a despeito de atender todas as exigências, não se individualiza, não sabe de si. Na sua visão, as mulheres se coletivizaram, acrescento, se escravizaram, de modo que deixaram de ser pessoas conscientes de si e de conviverem consigo.
Foi para não se perder de si mesma e do principal e único projeto de vida – escrever – que Simone de Beauvoir abriu mão da multiplicidade de afazeres. Mas na unicidade do seu caminho triunfou implacável.
Ela não se definiu como burguesa, religiosa, ateia, mulher, mãe, professora, filósofa. Não se perdeu na tentativa de corresponder às várias funções que fragmentam e dilaceram a individualidade. Nem mesmo se confundia com o próprio nome.
É como se a ouvisse dizer “eu sou eu”, e se isso não bastar, nada mais basta.