Quero fazer minha a declaração da escritora Marina Colasanti: “Costumo dizer que fui mais formada pela leitura do que por escola ou família. A leitura foi sustentação e argamassa na construção da mulher que sou hoje”.
Li num livro, o qual já não me lembro, que uma das razões que pode levar alguém a se interessar pela leitura relaciona-se à ausência do pai. Como a figura paterna representa uma espécie de autoridade, a sua falta pode fazer que a pessoa busque noutro lugar suprir essa presença que culturalmente tem por função a imposição de limites ou a própria Lei.
Não sei até que ponto isso se constitui verdade. Mas quando li não deixei de pensar em mim cujo interesse pela leitura sempre me pareceu relacionada, de algum modo, ao meu pai.
Cresci sem ouvir “não” de homem algum e nem mesmo a tão falada proteção e segurança que um pai costuma destinar aos filhos, principalmente quando se trata de menina, foi a mim direcionada.
Não tenho na memória os registros do calor de braços fortes a me segurarem, quer por amor ou cuidado. As lembranças do meu pai estão ocupadas pelo vácuo impreenchível ou por pensamentos de como seria minha vida se ele tivesse sido presente. Nunca saberei como nunca aceitei no mais fundo de mim o fato de não tê-lo.
De todo modo, o vazio de um falta provavelmente me lançou nos braços dos livros. E fui totalmente invadida pela desmedida ânsia de saber. Os livros me alicerçaram, me construíram de tal forma que posso furtar as palavras da escritora Nélida Piñon: “Sou filha de minha mãe e dos livros que li.”
Não posso me transformar em pernona non grata e dizer que a família em nada me acrescentou. Os valores do respeito, da honestidade, do trabalho e da dignidade eram por demais transparentes para que não os notasse. Embora vivesse na simplicidade, a família possuía o brio necessário para bem criar filhos. Negar que tudo isso me foi repassado por puramente observar os atos e a forma com que viviam seria cometer tremenda injustiça a que não ouso.
No entanto, inveja, ira, ciúmes, competições, fofocas, malícias e maledicências constituem o outro lado que também apreendi no universo familiar e que busquei durante todo o tempo combater com as forças de que dispunha.
A mediocridade espreita as relações humanas e senti, ainda criança, que não poderia render-me a ela. Eu via o excesso de intimidade arrastar os limites dos contornos a que não seria permitido avançar sem que me sentisse de certo modo agredida. Tornei-me arisca. Recuei.
Os livros também representavam uma fuga desse mundo por demais familiar e íntimo onde todos se metem em tudo e contra todos, salvo as evidentes preferências que se estabelecem entre uns e outros e que torna-se impossível disfarçar.
No final das contas, ninguém disfarça simpatias e antipatias. É como diz Freud: “Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos.” Também não conseguia esconder que tudo aquilo me desagradava, e muito!
A leitura sempre pareceu me salvar de algo que poderia absolutamente me confinar e limitar. Era a transcendência, afinal. E não posso deixar de reconhecer que ela se constitui mesmo a base que me constrói.
Admito que a escola pública, embora com suas limitações, teve papel importantíssimo em minha instrução como também os professores que respeitava e admirava e que tão bem souberam reconhecer e afirmar a inteligência que supunham que eu tivesse desde muito cedo.
Mas são os livros que verdadeiramente sustentam minha formação. Sou a prova viva de que uma pessoa até pode sobreviver sem um pai, mas não sei se poderia afirmar isso se também me privassem os livros.