Dar presente exige não apenas a vontade genuína de agradar ao outro, mas sobretudo certo grau de sensibilidade, perícia e técnica. Creio que aprimorei essa arte com um homem refinado. A primeira vez que nos vimos ele carregava uma sacola de tecido com foto e frase de minha escritora preferida, recheada com livros de belas e raras edições, além de outros cujos temas orbitavam a obra e a vida de Clarice Lispector. Não pude conter a alegria e a surpresa, nem esquecer jamais esse encontro. Sobre o que falamos naquele dia pouco me recordo, mas guardo cada presente com bastante amor, significado e zelo.
Durante os meses que tivemos contato foram muitos os objetos que recebi e todos eles, posso afirmar, carregavam um ponto de identificação comigo. O vinho de aniversário foi um Syrah, uva de que mais gosto, acompanhado de um cartão poético: “O ser busca outro ser, e ao conhecê-lo acha a razão de ser, já dividido. São dois em um: amor, sublime selo que à vida imprime cor, graça e sentido”.
Os demais livros, se não eram da Clarice, diziam respeito a algum assunto que me interessava no momento e sobre o qual comentava sem imaginar que dali a dias algo maravilhoso me seria entregue. Todos os presentes me continham, eram uma extensão de minha personalidade ou estavam destinados a fazer parte de um ser que em mim se faria.
Até mesmo as sugestões de leitura vinham ao encontro de meus anseios mudos. Leia “Grande Sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa, “Afinidades eletivas”, de Goethe…, dizia-me, livros que marcaram profundamente minha vida, que me impulsionaram a um salto de compreensão da natureza humana e que me ajudam na travessia de meus dias. Quando rememoro, impressiona-me a precisão com que me agradava. Nada que ganhei carece de sentido. Tudo era à exata medida de mim. Por meio de gestos, palavras e presentes fez-me vislumbrar algo que até então era aos meus olhos inalcançável. Por que me incitava a coisas tão grandiosas mesmo diante de minha timidez frente a ele?
Há pessoas que presenteiam com base naquilo que gostariam de receber. E quantas vezes eu própria devo ter feito o mesmo. Ele não. Saía de si como num transe para saber-se de mim. E como alegrava-me a ideia e a prova de que alguém me compreendia e sabia exatamente o que poderia constituir objeto de meu desejo – a conversa girava ao meu redor, e presenteava-me com tudo aquilo que me expandia a fim de que pudesse me tornar não o que era, mas o que imaginava que eu pudesse vir a ser.
E que presente melhor alguém pode receber do que uma voz a bradar: “Nunca deixe de ser você, por nada nem por ninguém. A primeira coisa que vou lhe pedir antes de estabelecermos qualquer relação é que você me prometa que jamais vai deixar de ser você.”
E antes que se perdesse em fantasias sobre mim tratei de revelar algo que supunha ser o pior de todos os defeitos e que poderia comprometer tudo o que pensava acerca de alguém que acabara de conhecer.
“Talvez eu seja a pessoa mais orgulhosa que você já viu na vida”.
Ele sorriu. “Mas é isso que você chama de defeito? Achei que fosse coisa grave e até me assustei com o que poderia dizer.” Quem sabe, para ele, como para Clarice, o orgulho seja apenas algo infantil. Embora mais tarde tenha sentido na pele que eu realmente o era, pois ao dar as costas não mais voltei.
Os presentes estão todos guardados e nem todo orgulho do mundo me levaria a desfazer deles. São meus. Sou eus.
Lembro-me de uma aula de Psicanálise, em que a professora narrou um fato curioso sobre um neurótico. Ele morava numa casa parcialmente destruída cuja reforma foi empreendida pelas pessoas que o atendiam no centro médico. A expectativa era de que o morador adorasse a “nova” residência, por a terem tornado mais bela e habitável. No entanto, o homem ficou nervoso ao deparar com a mudança; em poucos dias quebrou as paredes para que o local se parecesse com o de antes da intervenção. Ao ser instado a revelar o motivo disse que a casa como a deixaram nem mesmo parecia que era dele. Queria de volta aquilo com que se identificava, a beleza aos próprios olhos, sua identidade exposta no que lhe pertencia.
Talvez todo esse desgaste seria evitado caso perguntassem ao homem se gostaria que reformassem o lugar onde morava. Presumo que talvez a melhor maneira de dar algo a alguém seja questionar sobre o que mais lhe agrada, com o que se identifica ou prestar atenção ao que gosta ou quer.
“Os homens passam, os diamantes ficam”, dizia a sedutora Marilyn Monroe.
Que cada um tenha a alegria e o prazer de receber de nós os diamantes que considerem de maior valor, alcance e sentido. Imperecível!
Mas cá pra nós: dar de verdade, meu amor, é só para quem sabe.