A partida dos homens

Meu convidado de hoje para aquele café deliciosamente autoimposto de depois do almoço foi ninguém menos que o filósofo Friedrish Nietzsche. Até o momento nosso contato fora meramente esporádico, por intermédio de algumas páginas de “Além do bem e do mal” e pela leitura e releitura de “Schopenhauer como educador”, uma casual e grata surpresa saltada das prateleiras da Livraria Cultura num de meus passeios por entre os livros.

Encontramo-nos na Livraria Sebinho. Ele chegou “Humano, demasiado humano” para não perceber o êxtase com que comecei a devorar-lhe a capa. Sua escrita, de extrema elegância, sedutora e atraente me capturou nas linhas iniciais.

Aquele que proclamou: “Não sou um homem, sou uma dinamite”, disse-o bem. Explosão!

Senti-me o ser de “espírito-livre” que, em não existindo de fato, Nietzsche criou hipoteticamente para fazê-lo seu amigo. Aquele com quem podemos conversar e rir, nos momentos em que queremos conversar e rir, mas também podemos mandá-lo para o outro lado do planeta quando não estamos a fim de papo nem de nada. Tudo bem que fosse assim! O espírito-livre compreenderia.

A leitura estava tão instigante que até aceitei o oferta do garçom, mesmo diante da ameaça ao meu primeiro dia de dieta: “A senhorita aceita um brigadeiro?” Saborear um doce enquanto lia era a promessa do mais perfeito gozo corpo-espírito. Juntos numa só comunhão. Aceitei o gozo.

E como se mudamente eu pedisse para que aquela plenitude fosse logo embora antes que morresse de satisfação e de felicidade, eis que meu desejo foi atendido e o silêncio que me rondava gravemente interrompido.

Duas mulheres se sentaram na mesa ao lado. Uma delas não falava, gritava. Enquanto se exaltava e contava pormenores de sua vida em alto tom, eu mexia e revirava na cadeira, a encarava um pouco como quem diz “menos”, levantava o livro até a altura dos ombros na tentativa de que “se mancasse” e falasse mais baixo. Tudo em vão. Ela parecia pensar: “Agora mesmo é que vou berrar”.

Preferi não continuar o confronto mudo que iniciei e me pus a escutar a conversa. Contava para a amiga que havia se casado há um ano com outra mulher, mas que não se sentia aceita, amada, acolhida. Que a esposa não lhe dava atenção e preferia sair na companhia da irmã enquanto ela ficava de escanteio. Então, a sua criança interior esperneava. Ela contara à terapeuta e chegaram a conclusão de que fora uma menina carente em decorrência do desvio da atenção dos pais quando nasciam os irmãos. E reclamava de pessoas que não a escutavam, não lhe atendiam, não davam ouvido aos seus apelos. Estava visivelmente em desespero de causa. E falava tanto e mal de outras pessoas que, se fosse eu a esposa, o casamento teria durado apenas um dia.

Olhei para o seu prato, que estava muito cheio, e pensei: Essa prosa vai demorar é muito ainda. Saí e fui à procura de outro lugar mais tranquilo para continuar a conversa com Nietzsche.

Fui à Livraria Cotidiano e, mal havia lido duas páginas, chegaram quatro homens muito bem trajados e de semblantes alegres e serenos. Cumprimentaram-me, sentaram-se na mesa ao lado e, ao perceberem que eu estava lendo, não falavam, sussurravam.

Dessa vez, eu mesma quis ter o prazer de escutá-los. Tive de me esforçar, pois além de fingir que continuava lendo, falavam muito baixo. Nietzsche que me esperasse até mais tarde.

Eles discutiam negócios e brincavam uns com outros. Depois trouxeram para o centro da mesa uma pessoa que não estava presente. Diziam: ele é muito competente, sério, inteligente. O outro: o cara é confiável, já trabalhei com ele. Muito comprometido, tem postura. Ele é bom. De repente, sobre uma colega de trabalho: faça tudo que ela disser, pois além de competente… E deram risada. Eu entendi. Faça tudo conforme ela disser, sem medo, repetia outro.

Que conversa gostosa e bem humorada! Em momento algum reclamação, desespero, maledicência, crítica. Saíram de lá com a mesma serenidade com que entraram.

Não sei por que me ocorreu agora lembrar-me de uma entrevista em que Elke Maravilha diz que vivia numa casa com muitas mulheres, mas não gostava daquele ambiente onde ouvia muitas fofocas, indiretas e maldades de umas contra as outras. Então, pediu ao pai que a levasse para as pescarias que ele fazia com os amigos. Adorava estar entre os homens, pois os considerava brincalhões, leais entre si e mais verdadeiros.

Após a partida dos homens, fiquei encostada no sofá. Pensativa. Comecei a folhear o livro, aleatoriamente. Deparo-me com uma página em que salta aos olhos o título “Mulheres no ódio”, cujo início li: “No estado de ódio, as mulheres são mais perigosas que os homens…”. Fechei rapidamente o objeto.

Quem sabe um dia convide o filósofo para mais um café! Por enquanto, quero ficar entre aqueles que são humanos, demasiadamente humanos.

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