Há um mês não escrevo nada. Penso em discorrer sobre muitas coisas que me vem, faço anotações, chego a elaborar textos inteiros na cabeça, mas falta-me disposição para movimentar os dedos.
Volta e meia, Raquel de Queiroz declarava ter preguiça de escrever e, só o fazia, por não dominar outro ofício. Além do mais, transformou a escrita em ato gerador de sustento. Jornalista, tinha obrigação de encaminhar semanalmente suas crônicas aos periódicos.
Escrever exige tal força que só agora consigo perceber. Parece-me que antes escrevia naturalmente, com mais facilidade; sentava-me frente à máquina e as ideias vinham e fluíam sem peleja ou sofrimento. Agora não. Estou cada vez mais exigente. Tenho lido tantos textos bons e bem escritos, e acabo com a impressão de que tudo que vier a escrever será menor, sem importância e dispensável. Mas também não duvido que esteja dominada pela preguiça admitida de forma tão digna pela escritora nordestina.
Antes de tudo, fui e sou leitora. Ao ler nos posicionamos mais passivamente, ainda que haja um diálogo com o autor e mesmo diante do esforço necessário à interpretação e compreensão. Por outro lado, escrever exige postura ativa e de comando, de disposição ordenada das ideias, escolha das palavras que melhor as expressem. Espero que essa fase de ficar “só recebendo” dos outros passe logo e que meu animus escrevendis seja resgatado.
Quero muito terminar um conto sobre dois amantes que se encontram no Café Visconde, cuja história já está com os contornos delineados. A mulher se deixou envolver porque confundiu desejo com amor. Conversa fiada. Pura mentira. Ela sabia que era desejo e desejava também. A fome nunca engana. Parece-me que ela diz pensar ser amor para se justificar. Não aos outros, mas a si mesma. Tenho de dar fim à narrativa, pois há muito eles estão sentados num restaurante, de mãos dadas. Nesse momento parei de escrever; a inspiração fugiu-me. Mas admito que deixo-os mais tempo juntos, porque há de vir o instante em que a separação será inevitável.
Pedi minha mãe que me mandasse a cópia de algumas anotações que fiz quando estive em sua casa. Entre os temas listados está escrito: “A mentira gagueja”.
Pretendo conseguir escrever sobre a mentira que tanto me incomoda à medida que não minto. Longe de afirmar isso na tentativa de infundir um moralismo falso. Não minto por incompetência. Ouso dizer, por falta de dom.
Na vida não precisei me utilizar desse subterfúgio. Acho humilhante mentir, porque, a pretexto de enganar uma pessoa, tenho de admitir, antes, para mim mesma, que estou mentindo, ainda que o outro sequer desconfie. Não gosto de me trapacear. Tenho a impressão de que a cada mentira perderia a admiração e o respeito por mim mesma. E o que pode restar de alguém que não se respeita?
Sei que poderia mentir pelo menos enquanto escrevo, mas nem isso. Nem isso.
Também quero escrever sobre um homem que não sai da minha cabeça, porque não o transfigurei em palavras. Um dia, estava num restaurante lendo um livro e, gentilmente, ele pediu para conversar comigo. Consenti.
Queria me vender um exemplar da Revista Traços, cuja parte do valor é destinada a auxiliar ex-dependentes químicos. Um apoio à ressocialização dessas pessoas que, em algum momento da vida, se entregaram à sedução de não se pertencerem.
Perguntei-lhe o nome. “Samuel. E o seu?”
“Ana”.
Ele: “Sabia que, na Bíblia, Ana é mãe de Samuel?”
De certa forma, um homem quer uma mãe em todas as mulheres. Mas se não pude dar-lhe colo, pelo menos prestei-lhe ouvidos atentos.
“Posso contar minha história?”
Fiz gesto afirmativo. Prontamente, agachou-se diante de mim como quem se prostra à Virgem.
Era um ex-alcoólatra que perdera contato com mulher e filhos em decorrência do vício. Ela o deixou, pois não suportava as agressões, além das desconfianças e dos ciúmes que passou a apresentar. Admitiu que eram invenções da cabeça dele, provenientes dos delírios causados pelo álcool. Agora, sem ninguém, tentava recuperar a dignidade perdida.
Ao terminar a fala, deu uma risada para expor o interior de sua boca, e disse-me com olhos vagos: “Veja, perdi até o sorriso”.
Uma mudez me invadiu com a proximidade daquela boca sem dentes. Que fazer?
Num movimento rápido desviei os olhos para dentro da bolsa à procura de dinheiro.
Comprei a revista.
Ao se despedir, ainda fitou-me: “Por que seus olhos estão tristes, moça?”
“Porque perdi alguém que gosto muito” – respondi sobressaltada.
“Oh! Seu coraçãozinho deve estar muito doído. Mas vai passar, porque Deus vai cuidar de você.”
Sorri-lhe: “Ah sim. Deus vai cuidar de mim.”
E dele, Deus meu, quem cuida?
Quem?
estava procurando informacoes sobre a revista traços e vim parar aqui. lindo texto.
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Obrigada! Que bom que gostou!😊
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