O coração dava mostras de que não ia bem. Acelerava diante das emoções mais inesperadas como quando, cheia de vertigem, olhava para o céu e via que um avião sobrevoava. Noites havia em que o silêncio era interrompido pelas batidas fortes no peito cujo barulho incomodava os ouvidos atentos. A boca seca, a cabeça pesada e uma leve dormência nos membros inferiores e nas mãos. Não morreria de outro modo. Intuía que seria arrebatada por algo fulminante que lhe atingiria o centro. Aniquilada pela velocidade descontrolada de seu órgão pulsante. Morrer do coração. Achou das mortes, a mais bonita.
Numa tarde ensolarada de sábado, a notícia. Os desavisados ficaram surpresos, mas se ela estivesse viva, ao saber da própria morte, não se surpreenderia.
Doaram os demais órgãos para funcionarem em outros corpos e dar-lhes mais anos de vida. Só levaria consigo o coração como prova que ninguém além dela ousaria sentir o que sentia.
Esse coração que tantas vezes sangrou de dor de ser era o mesmo que vivia em permanente contemplação diante do que existe. Sem falar nas alegrias íntimas e constantes que lhe tomavam um dia inteiro. Como foi alegre! E o amor! Não aquele amor de mulher para o homem, nem de uma mãe para o filho. O amor em si mesmo, sem sujeitos ou objetos, esquentando-lhe o corpo e inebriando a alma cheia de afetos.
Uma criança a lhe pedir doce, um morador de rua dirigindo-se a ela para solicitar tão pouco. Dá uns trocados, moça. Outro homem implorando-lhe um prato de comida. Punha-se a conversar com o estranho, porque sabia que a fome dele não era só de alimento. Como amava os homens. Quis ser mãe de todos aqueles que se aproximavam para lhe pedir qualquer coisa. Sabia que tinha amor demais dentro de si a ponto de nem ter filhos. Acaso os tivesse voltaria-se inteiramente para eles. Com sua potente força de amar os esmagaria. Essa mesma força que fez o coração cair em desatino e perder o compasso. Amo tanto você, meu filho. Não quero que o sofrimento lhe alcance, nem que a morte aniquile sua existência e, por consequência, a minha.
Não se renderia ao restritivo ofício da maternidade que dá as costas aos demais e cuida apenas dos seus. Daria-se toda aos carentes de amor e pão. Seu ideal era tocar a humanidade, indistintamente. Alimentar não apenas os gerados de suas entranhas.
Aos que se mantiveram em silêncio enquanto viveu, tenham, pelo menos, a dignidade de mantê-lo agora que sabem de sua morte. Não vertam lágrimas nem lhe dirijam palavras vazias inspiradas pelo remorso. Se percorreu a vida firme e imune aos frívolos sentimentos, agora é que não precisa deles. Que ninguém mostre bondade às custas de tal ausência. Morreu do coração. Isso quer dizer muita coisa. Não é preciso que digam mais nada.