Tio Juquinha e a porquinha

É, meus amados leitores, como o mundo dá voltas, e como, muitas vezes, nos vemos obrigados, por imposição própria ou pedido alheio, a fazer as mesmas coisas que um dia serviram de fundamento para julgarmos e condenarmos os outros. Quantas vezes ousamos acusar sem, antes, entender os motivos alheios que os levaram a determinada atitude ou comportamento. No entanto, para pagarmos a nossa língua, como bem dizia minha avó, eis que nos vemos repetir as mesmas ações outrora veementemente reprovadas.

Vocês devem estar se perguntando a que me refiro. Acalmem-se, pois para mim não é nada fácil admitir o que ora venho expor, tendo em vista dois motivos: o primeiro, admitir publicamente um desatino fere em demasia meu orgulho; o segundo, ter que relembrar uma morte trágica, cujo abalo acometeu a família, é rememorar tristeza já vencida e afastada por essa memória que aprendeu por si mesma distanciar acontecimentos passados. O problema é que a forma encontrada por ela para dispersar os acontecimentos tristes ou danosos atinge os alegres e benéficos, de maneira que todos acabam por cair numa imensa teia neural de esquecimento. Resta, pois, contentar-me apenas com aquilo que está sendo no exato momento que é.

Nunca pensei escrever por encomenda ou em troca de dinheiro. Até critiquei muito quem assim o faz. Quanto a mim, se o fizesse em decorrência desses motivos, a escrita seria fatalmente abalada pela ideia da obrigação que tanto me oprime, inibe e paralisa. Sempre tratei de escrever por mera disposição da vontade, na hora em que o assunto se revela de tal maneira que ou escrevo ou a inquietação me toma e não me deixa fazer outra coisa senão desabrochar em palavras.

O emprego público que conquistei, por mérito, paga-me o suficiente para prover meu sustento, de modo que posso me gabar de escrever tão somente por vontade e na hora que bem quero. Portanto, valho-me disso para enunciar aos quatro cantos que só escrevo sobre aquilo que me vem à cabeça e, se tivesse que ser remunerada para isso, não conseguiria esboçar uma linha sequer.

Ocorre que um amigo de infância surgiu das profundezas de São Salvador da Bahia noticiando-me que está lendo o livro “Quero dar minha mãe ao mundo”, de minha autoria, o qual lhe transporta à nossa infância e o leva a rememorar episódios que vivenciamos juntos. Inclusive, ao ler um de meus textos, cujos nomes dos personagens troco para despistar os verdadeiros, disse-me: Essa Maria preta né Maria preta não, viu? É fulana de tal… Pensa que me engana… Gargalhamos até não poder mais. Ele é fogo. Para não ser de novo desmascarada, aqui, vou me referir ao dito cujo pelo seu nome verdadeiro. Quem manda mexer com quem escreve?

Portanto, percebo que mesmo quando invento a verdade se revela.

Pois esse mesmo amigo tratou de me fazer uma encomenda: Escreve sobre a porquinha do Juca… Escreve também sobre a nossa vizinha, aquela bruxa… Escreve….

Pode parar – disse-lhe. Uma coisa de cada vez, além do mais, não sou escritora de encomenda.

O problema também é relembrar os detalhes dos acontecimentos, pois falo e repito, minha memória não é das mais registradoras. Penso até que ela deveria ser estudada e analisada pelas ciências cognitivas ou mesmo pela Literatura, neste último caso, para equiparar-me a Michel de Montaigne, o que não seria nada mal, caso essa fragilidade comum me levasse a escrever como ele.

Uma vez que fui instada a escrever sobre temas impostos pelo grande amigo Nilo, que de tão grande recebeu por nome o do maior e mais importante rio do Egito Antigo, não me esquivei de atender-lhe o desejo. Quem gosto faz de mim o que bem entende, às vezes, até misérias, as quais obedeço por pura intenção de provar o amor.

Tive que buscar informações adicionais para formular o enredo da história de tio Juquinha e sua porquinha, uma vez que quase nada me resta na lembrança a esse respeito. Consultei o encomendador do texto e as primas cujas memórias são infalíveis quando se trata de rememorar maus feitos.

Eis o que segue:

Tio Juquinha não para quieto um só minuto. Mexe aqui, ali, acolá, cria, inventa e reinventa. É um criador de primeira qualidade. Há quem, até hoje, não se conforma de ele não ter ido estudar em Harvard, como legítimo representante do Brasil, tendo em vista sua inteligência e aguda capacidade criativa. Tudo ele conserta, ajeita, remenda e repara. Ao me visitar, dá conta de todas as coisas quebradas da casa e, quando menos se espera, consertou todas elas como num passe de mágica.

Suas mãos são milagrosas de um tanto que deu agora para fazer as vezes de curandeiro. Se alguém passa mal do estômago, mistura umas ervas fortes e dá para a pessoa beber. Quando a gente pergunta o que tem dentro, responde: Bebe! E se a gente insiste, ele fala mais alto: Bebe! Quem bebe põe até as tripas para fora, fica curado e os créditos vão para tio Juquinha como a pessoa que faz o mais potente remédio. Nem precisa pagar uma consulta ao gastro. Tio Juquinha é mil e uma utilidades.

Há um tempo, quando morava na Bahia, foi presenteado com uma porquinha que, além de porca, era muito burra. Diferente dos cachorros, conhecidos pelas semelhanças que têm com os donos, a porquinha em nada se parecia com o prodigioso tio Juquinha. Vou contar por quê.

Mas tenham calma, leitores, e você também Nilo. Eu bem sei que está curioso para chegar ao fim dessa estória encomendada. Basta a obrigação de criá-la, a qual aceitei sem relutâncias, apesar de contrariar meus princípios de escrevinhadora. Se não a escrevo por dinheiro, posto não ter me oferecido nenhuma recompensa, faço por imensa consideração que tenho à nossa longa amizade. Nem pense que isso lhe dá o direito de fazer novas exigências. Sei muito bem que tem condições suficientes de se tornar um grande escritor e discorrer sobre os temas que lhe são aprazíveis ou desprezíveis. Por ora, fique bem claro: não me peça mais nada. Nem para terminar rápido essa narrativa.

Nilo, me conta como vai a vida em Salvador. Tem ido a Coribe? Ainda irei à capital baiana lhe fazer uma visita e tomar um café naquela sua sala chique e espaçosa, frente ao mar. Você me leva a fazer cada coisa. Da última vez que visitei a cidade, também por sua causa, jurei nunca mais voltar. E olha eu querendo retornar para vê-lo mais uma vez.

Senhor Superintendente Federal, Vossa Excelência manda, eu obedeço. Sou sua serva, meu amigo. Nilo, você está ganhando muito bem, eu sei. Você é rico, sei inclusive. Vai virar político, pode escrever. Quando isso acontecer baterei à porta do seu gabinete e exigirei o pagamento dessa minha profecia. E por esse texto, Nilo, vai pagar quanto? Já que feri um de meus princípios de escrevinhadora, a liberdade de escolher os assuntos a tratar, sem desmandos alheios, nada mais impede que agora escreva por dinheiro.

Onde estava mesmo? Lembrei. De posse da porquinha, tio Juquinha decidiu colocá-la em seu devido lugar. Alguma coisa nela deve ter lhe despertado a ponto de tentar protegê-la contra possível furto, de modo que o chiqueiro a ela destinado contou com algo inovador – uma cerca elétrica. Só tio Juquinha no mundo pensaria numa coisa dessa.

Enquanto colocava a cerca em volta do chiqueiro, feliz e compenetrado com a mais nova invenção, a porquinha se mantinha quieta, amarrada num coqueiro, olhando-o de longe, mal sabendo o destino que a esperava.

Quando tudo ficou pronto, tio Juquinha convocou a família para assistir o teste do experimento. Quem tocaria na cerca elétrica para conferir se estava em pleno funcionamento? A própria porquinha, por expressa disposição do proprietário da bichinha. Quem seria doido de pôr à prova a própria vida? Nem tio Juquinha, apesar da coragem, ousaria tanto.

Desamarrou a porquinha e a carregou no colo até o chiqueiro.

Agora é só tangê-la para que ela toque a cerca – gritou.

Apesar de um pouco assustada, movimentava-se com seu rabinho para lá e para cá, mas ficava só enrolando no meio do chiqueiro, sem encostar no cercado, como se pressentisse o pior.

No entanto, tio Juquinha não é dos que desistem facilmente. Tanto tangeu, tanto cutucou, tanto azucrinou a bichinha que ela tocou a cerca por três vezes. Suspensão no ar… Nada aconteceu. Nem mesmo um pequeno choque.

Tio Juquinha não se deu por satisfeito, e logo bolou um plano, porque como disse, ele é dos que insistem e persistem até conseguir o que quer. Teve uma ideia das mais geniais e a proclamou aos ouvintes, que a essa hora estavam ávidos para o desfecho dessa história.

Você lembra, Nilo? Eu não lembro de nada. Tudo que conto aqui ouvi de alguns dos presentes, cujas narrativas juntei para atender seu pedido. Calma, Nilo. Consigo pressentir daqui sua agonia para que termine logo. Não se avexe, senão paro de escrever agora e ninguém mais saberá o que aconteceu. O escritor tem lá suas vinganças. Oh tempo bom aquele de nossa infância, não é mesmo? Nossas brincadeiras infindáveis, nossas correrias por detrás dos cartórios e no jardim, as brigas, as competições, as reconciliações, os toques e retoques da meninice. E a porquinha…

Pois bem, tio Juquinha teve outra magnífica ideia após a porquinha tocar três vezes a cerca elétrica, sem sucesso. Disparou a falar: Vamos jogar água nela e na cerca. Pega o balde d’agua, Luizinho.

A porquinha encharcada relutava aproximar da cerca, até grunhia alto como último grito de protesto. Tão molhadinha estava, tão ouriçada, doidinha e burrinha que tocou o cercado e…. explosão.

Caiu dura e estatelada no chão. Mortinha, com o seu couro frito, pedindo, aliás, implorando para ser comida.

Nenhum dos narradores contou-me como tio Juquinha reagiu ao acontecimento. E eu realmente não me lembro. À noite, fez-se um churrasco da bichinha e todos se deliciaram com sua desgraça. Houve até paródia para homenageá-la, a qual foi cantada em seu entorno, enquanto era degustada:

Que horror, a porquinha tio Juquinha matou/Na cerquinha água ele jogou/E a porquinha eletrocutou.

Uma e vinte da manhã. Chega, Nilo. Deu uma fome danada agora e nem ao menos tenho porquinha em casa para contar estória ou virar churrasco com o qual poderia me saciar antes de dormir.

P.S. Uma prima leu o texto e disse: faltou contar que tio Juquinha odiou a paródia que fizemos para retratar o acontecimento e ficou com raiva de nós todos, pois embora goste de pirraçar os outros, parece que não costuma achar muita graça quando é ele o motivo da piada.

Essa narrativa pode ir bastante longe à medida que novos contadores surgirem para completá-la com o muito que falta à minha curta memória.

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