DUAS MULHERES, DOIS CACHORROS E UM DESTINO

Para falar sobre cachorros, antes de mais nada preciso esclarecer que não sou a favor de nenhum tipo de maus tratos destinado a quem quer que seja, bicho ou homem. E digo isso para não confundirem a calorosa indignação que ora venho expor com uma aparente tendência à maldade, pois não me volto nem mesmo contra inofensivas baratas, desde a mais recente descoberta que, também elas, tem pleno direito à vida, porque tudo o que nasce merece viver. Aliás, tem um bicho, e não vou nem mencionar o nome dele, que poderia nem ter nascido. Mas não sou a criadora do mundo para ousar decidir quem sim e quem nunca, portanto deixo tudo ser como é.

Mas acontece que, por aí, estão achando ser o cachorro mais importante que gente. E não é. Ah você por acaso já teve cachorro para saber? Hão de perguntar-me… tive sim; o nome era Harry e eu gostava muito dele, apesar de nunca o ter reconhecido como filho, sobrinho, irmão ou enquadrá-lo em qualquer grau de parentesco, por mais próximo ou distante que fosse.

Ah mas tem gente que gosta mais do seu próprio cachorro do que dos parentes…. Hão de dizer-me. Eu sei, bem sei, inclusive tem gente que gosta mais de coisas, do carro, da casa, do diamante, do dinheiro e do ouro que dos parentes. Tudo isso sei e, também, tudo isso me espanta. Não deveríamos ser assim. Mas acontece que somos o que somos. Inclassificáveis, inclassificáveis… ora essa, já caí foi no embalo de uma canção.

Meu cachorro era branquinho, bonitinho e muito teimoso, tão teimoso que morreu atropelado por pura teimosia e desobediência.

Um dia, minha mãe saiu para fazer sua caminhada ritualística, uma hora por dia a que ela se dedica religiosamente há mais de vinte anos, e o danado do Harry resolveu ir atrás dela, que o repreendeu assim: Harry, fique em casa, senão você será atropelado na rua.

Harry não ficou em casa e foi atropelado. Como não sou teimosa, todas as vezes em que minha mãe me mandou ficar em casa, eu fiquei. Vai saber o que teria sido de mim se fosse relutante como Harry. E daí é que nem todo cachorro se parece com seu dono. Comigo, ele não se parecia em nada.

Minha mãe ficou responsável por cuidar dele durante minha ausência, quando tive que deixá-lo para seguir meu próprio destino, e Harry não mais cabia em minha vida. Ela até tentou evitar um mal, mas se não tivesse sido atropelado, eu o teria perdido por outros motivos, como doença ou velhice. A desobediência dele apenas lhe antecipou o que viria mais tarde.

Depois disso não quis mais ter cachorro. Agora é que não terei mesmo, pois não sou maluca de deixar um bicho preso num apartamento. Não faço nem com um bicho o que não gostaria que fizessem comigo. Deus me livre de ficar presa, sob o argumento de cuidado e de amor. Amor a quem? Sai de mim, abacaxi. Era assim que minha avó paterna dizia. Repito o que os outros dizem se é o que também quero dizer nas mesmas ou semelhantes situações.

Em Brasília, os moradores gostam muito de cachorros. Alguém pode me dizer que em São Paulo também gostam, no Rio de Janeiro, na Bahia ou no sul… Mas vou falar de Brasilia, porque é onde vivo e posso acompanhar o cotidiano de pessoas com seus animais.

Esses dias vi um homem: com a mão esquerda segurava um cachorro pela coleira e, com a direita, outro no colo. Fiquei olhando, entregue a pensamentos como esses: Será que ele não consegue andar e segurar em si mesmo? Será que a liberdade de ter as mãos vazias o deixaria desorientado e perdido? Será que ele precisa se agarrar a qualquer coisa? Será que não consegue ser livre e leve e, por isso, precisa carregar o peso de outros seres? Será que esses cachorros precisam dele ou ele é quem mais precisa desses cachorros? Os bichos nunca precisam dos homens. Os homens é que precisam dos bichos, sob pena de sucumbência, concluí.

A necessidade e a carência humanas podem ser tão grandes que, muitas vezes, até tratam os bichos por seus descendentes. Só teriam condições de provar que cachorros não são filhos se tivessem diante de situações onde precisassem escolher entre salvar a vida do filho-homem ou do filho-bicho. Não tenho a menor dúvida que, por mais culto e inteligente que fosse, a pessoa agiria tal qual Fabiano, sertanejo rude, personagem de Graciliano Ramos, que, apesar da ignorância, mas movido pelo instinto, resolveu matar baleia e salvar os filhos. Ou então como fez o pai de um amigo que, tendo a canoa virado no rio, entre resgatar o filho e o cachorro que afogava, também escolheu o primeiro. Minha dúvida paira em pensar se na modernidade houve uma decadência no conceito de filho ou se elevaram demais o de cachorro.

Esses dias também vi uma mulher no shopping dando um passeio no qual empurrava um carro de bebê. Andava à minha frente e, como adoro ver as carinhas dos bebês enquanto passeiam, aproveitei quando ela parou e fiz questão de passar ao seu lado para dar uma olhadinha dentro do carrinho. Acontece que não havia bebê algum. Tinha uma cachorrinha muito bem tratada, devidamente bem vestida com roupas da moda, laços nos cabelos e tomando sua mamadeira. Susto! Não seria capaz de passear sozinha, sem ter que trocar fraldas, dar de comer, água ou tudo o mais que a cachorrinha lhe exigia? Aliás, que a mulher exigia de si mesma, porque a coitada da cachorra era uma indefesa em mãos humanas que teima transformar bicho em gente, sem nenhum consentimento da vítima. Um abuso, uma invasão imperdoável que fazem aos animais, que nunca pediram para serem civilizados ao truculento modo dos famintos humanos que querem o outro à sua forçada maneira.

Outro dia, num restaurante, percebi que havia pessoas aguardando lugares enquanto eu permanecia sozinha numa mesa com quatro cadeiras, lendo um livro e bem satisfeita após ter almoçado. Ofereci o meu lugar a uma mulher que estava do lado de fora, ao que ela respondeu que, infelizmente, não poderia entrar no restaurante, apesar da fome, porque estava acompanhada de seu cachorro, e este estava proibido de entrar no recinto. Nada mais disse! Mas bem que ela poderia ter saído sozinha se o seu destino não era um pet shop ou simplesmente um passeio ao ar livre. O pior é que estava crente que comeria com o seu cachorro à mesa, se não tivessem sido barrados logo na entrada.

Também já contei que meu próprio irmão me convidou para um almoço onde eu seria apresentada às minhas sobrinhas, e fui saltitante por imaginar que ele havia entrado com um processo de adoção de meninas, sem me avisar, portanto queria me fazer uma surpresa. Quando chego em sua casa, eis que me deparo com Juju e Bete, duas cachorrinhas muito bem vestidas e penteadas ao calor de um secador jamais dispensado por elas. Ou seria por ele? Fazer o quê? Tia de verdade não renega sua descendência. Estou aqui para o que der e vier. Tive que cumprir minha palavra de irmã.

Na casa da minha mãe também tem cachorro no quintal e o nome dele é Peter. Diz o marido dela que Peter foi ali colocado para ficar de olho na casa, mas bem desconfio que a função primeira do vigia é ficar de olho nela, porque é um cachorro tão bravo que ameaça morder até o dono, quanto mais outros que queiram beirar a esposa amada. A última vez que fui a Coribe tive que colocar esse cachorro feito detetive em seu devido lugar.

Numa manhã fria, acordei tão disposta e alegre que decidi ler um delicioso texto. Envolta, compenetrada, absolutamente entregue à leitura, fui inconvenientemente interrompida pelo latido constante, agudo e continuado de Peter, que não dava trégua. Dirigi-me até o quintal, olhei bem para os seus olhos e lhe disse num tom grave: Peter, deixa de ser mal educado. Vê se cala essa boca. Não vê que estou lendo?

Ele continuou a latir, assim me desloquei novamente ao seu encontro, olho por olho, dente por dente:

Peter, você não tem educação? Cala a boca que você está atrapalhando a minha leitura.

Antes de me sentar no sofá, ele voltou a latir. Dessa vez, fui muito brava em sua direção, disposta a falar de um jeito que seria a última, a definitiva, gritei:

Peter, cala essa sua boca, senão você vai ver o que vou fazer com você.

Peter calou-se imediatamente, ficou mudo durante todo o dia, não latiu para pedir almoço, não latiu para soltá-lo às três horas da tarde. Permaneceu silente, desconfiado, amedrontado, patético.

O que você fez com meu cachorro? – perguntou o marido de minha mãe.

Dei uns três gritos nele – respondi heroica.

Você calou a voz do meu cachorro – disse-me.

Era uma acusação grave demais para mim. Peter não latia, fiquei preocupada, me sentindo uma ditadora a abafar a voz dos que atentam contra minha paz e meu sossego. Não poderia ficar conhecida como a mulher que calou o grito de um bicho, logo eu, que brado, a meu modo, sobre a importância da liberdade de expressão e me expresso como bem quero, sem nunca admitir calarem-me.

Peter ficou muito triste, caminhava devagar, cabeça baixa. Um só latido não soava de sua boca de dentes afiados para não me incomodar. Em casa, todos ficamos assustados, sem entender muito bem o acontecimento. O esposo de minha mãe me olhava de lado, como a indagar, que mulher é essa que até o bravo e destemido Peter obedece?

A culpa e o remorso me tomaram. Fui até o quintal, mansinha, implorando-lhe perdão: Peter, meu amor, vem aqui na tia. A tia não vai mais brigar com você, meu amor. Venha, chegue perto. Toma uma paõzinho que trouxe para você, coma meu bem.

Peter rejeitava o alimento e os meus carinhos. Aquele cachorro valente se transformara num animal reprimido, fraco, medroso, acabrunhado.

Apelei para Deus ao perceber que, por mais doce que eu fosse, Peter não voltaria a ser como antes. A resolução do caso exigiria forças mais potentes. Algo se quebrara dentro dele, um olhar inexpressivo anunciava uma possível depressão. Fiquei apavorada. À noite, rezei o terço e, antes de cada dezena, repetia:

Meu Deus, devolve a voz de Peter. Não quero entrar para a história como a mulher que calou o latir natural de um cachorro.

Quando balbuciei “seja feita a Vossa vontade…”, ouvi um barulho. Era Peter. Cheia de alegria, acordei minha mãe para dizer-lhe: Mãe, Peter voltou a latir.

Dormimos em paz, e eu prometi a Deus que jamais gritarei com ninguém durante toda a minha vida, nem com gente, nem com bichos.

Pelo menos o meu caso com Peter teve solução. Mas o da minha mãe com Harry foi obrigatoriamente arquivado por morte real do sujeito.

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