Almoço de domingo

O almoço desse domingo não seria como os outros. Cansada e indisposta em virtude de seus vinte quilos a mais, adquiridos até o oitavo mês da gravidez, nesse dia ela preferiu não ter que lidar com o peso das atividades domésticas e sugeriu ao esposo que fossem almoçar num restaurante. Faltava a ele coragem para lhe negar qualquer pedido desde que soubera que ela abrigava o segundo filho seu. Como a abusar da disposição forçada daquele homem, Clara insinuou que poderiam convidar os seus pais a acompanhá-los, pois fazia tempo que não os via.

Ao escutar a mãe, o menino veio correndo alegre em sua direção anunciando alto que iria matar a saudade dos avós. Júlio calou-se e conteve o desejo de gritar que não gostaria de estragar o seu domingo na companhia do sogro, o qual jamais poupava tagarelices, mentiras e inconveniências. Triunfante em ter o desejo atendido, Clara seguiu em frente com suas roupas largas e a passos lentos, enquanto o menino logo atrás agarrou-se à mão do pai como que a arrastá-lo para mais um desses encontros familiares onde se veria obrigado a gozar da presença de pessoas com as quais não tinha afinidade nem se sentia satisfeito.

Os pais de Clara se acomodaram no carro e, antes que andassem poucos metros, Júlio ouviu do sogro: Será que depois que o meu neto nascer, esse meu genro vai demorar tanto de novo para acertar a bola no gol? E deu aquela sua gargalhada estridente.

Pelo amor de Deus, Chico. Você por acaso dormiu com eles, pois nem mesmo cumprimenta ninguém antes de soltar as suas piadas – disse a mulher dando-lhe uma cotovelada no canto esquerdo de sua avantajada barriga.

A filha estava tentando engravidar há cinco anos e só conseguiu à custa de caros tratamentos pagos com a ajuda dos pais. Júlio deu uma risada de canto sem graça. Preferiu não falar nada e seguir viagem. Antes, quis saber da esposa para onde iriam.

Mas veja bem, esse homem não sabe nem ao menos escolher um lugar para levar a família, Amélia – sussurrou o sogro. Ela deu-lhe outra cotovelada disfarçada e sugeriu que fossem a um restaurante argentino que ficava próximo.

Pode ser esse que mamãe sugeriu – disse Clara com sua voz estendida e preguiçosa de mulher prestes a dar à luz.

Nos últimos três meses, pouco esforço fazia para pensar nas mínimas coisas, pois além do cansaço, voltava-se toda para o ser que crescia dentro dela, de maneira que todo o exterior não mais lhe despertava, salvo as raras vezes em que o primogênito a ela se dirigia. Júlio estava acostumado com a falta de atenção da esposa no período da gravidez, uma vez que esse era o segundo filho do casal, o qual só fora concebido em virtude da insistência de Clara que sempre sonhou em ser mãe antes mesmo de pensar em arranjar um marido.

Olha papai, se vou casar, só Deus sabe. Mas filhos terei muitos e isso quem sabe sou eu – dizia Clara adolescente.

O pai não entendia muito bem sobre essas modernidades e dizia-lhe: Minha filha, que conversa mais sem sentido essa sua. Não foi para isso que te criei. Veja bem, veja bem o que vai fazer de sua vida. Não quero mãe solteira dentro de minha casa. Trate de tirar essas ideias da cabeça.

Quando conheceu Júlio, Clara não quis deixar escapar a possibilidade de se casar com ele. Precisava ter filhos, porque assim queria e não podia contrariar a vontade do pai, o qual ficaria muito decepcionado caso ela os concebesse fora do modelo tradicional familiar. Se dependesse de Júlio, ainda estariam namorando, no entanto ele acabou se rendendo aos apelos de Clara e, em menos de um ano, estavam frente a um padre jurando mutuamente amor e fidelidade até que a morte os separassem. No entanto, o que os separou não foi a morte física de um deles. Algo havia morrido entre o casal, anunciando uma espécie de separação. Era a morte do desejo. Desde o nascimento do primeiro filho, Júlio não desejava mais a sua esposa.

Do lugar em que dividia a mesa com as companhias do almoço, ele lançava furtivos olhares para outra mulher que estava a alguns metros de distância. Clara estava de costas para o desejo do marido. Sentada com a deselegância de quem não precisa seduzir mais ninguém, ela direcionava sua atenção aos pais e conversava com eles sobre histórias vividas pela família, as quais não despertavam interesse algum em Júlio, embora ele esboçasse constrangidos sorrisos de quem finge estar escutando o que a cabeça ignora por completo.Depois, passaram a falar sobre o bebê que estava prestes a chegar. Ainda não sabiam o sexo. Segundo Clara, o filho mais velho desejava que fosse um menino com quem pudesse dividir brincadeiras comuns. Já o pai desejava uma menina.

Não é mesmo Júlio? – indagou Clara.

Ele tentou acompanhar o rumo da conversa, mas estava totalmente perdido naquele meio. Só o corpo presenciava a cena, pois sua atenção estava voltada inteiramente para a mesa ao lado.

Que menina? – perguntou.

Eu disse aos meus pais que você prefere que nosso bebê seja uma menininha.

Não tenho preferências, Clara. Isso é coisa da sua cabeça. O importante é que nasça com saúde. Você é quem faz questão de dizer que prefere outro menino. Até agora se nega a descobrir o sexo para não ter uma surpresa que não coincida com as suas expectativas. Amarei de qualquer jeito, independente de sexo.

O sogro sussurrou: Está vendo aí, Amélia, ele não tem vontade própria para nada. Onde nossa filha foi se meter?

Amélia fingiu não escutar e disse: Júlio tem toda razão. O importante é que meu neto ou minha neta nasça com saúde.

O almoço seguiu sem que Júlio conseguisse se concentrar nas conversas que se emendavam umas nas outras. Ele tinha muita vontade própria, a despeito do julgamento do sogro que nada sabia sobre os pensamentos que passavam no íntimo do genro. Tinha vontade de abandonar o lar, de chegar à mesa ao lado e oferecer companhia para a mulher que observava desde a chegada ao local, cujos olhos tinham o brilho que há muito havia abandonado os olhos de Clara.

O sogro não sabia que Júlio tinha vontade de voltar no tempo e nunca ter conhecido nenhum daqueles com quem era obrigado a conviver. Vontade ele tinha de muitas coisas. Imaginava que, se não fossem os filhos, entregaria-se aos seus desejos acumulados e reprimidos, daria as costas para Clara e buscaria resgatar em outros ares os prazeres e a vida que o compromisso da jura eterna conseguiu esmagar.

Um casal de conhecidos aproximou-se da mesa e deram parabéns aos futuros pais. Como é a sensação de ser pai novamente, Júlio? – perguntou o homem.

Muito boa. Ter filhos deixa a gente mais centrado. Impede que façamos algumas loucuras – disse ao tempo em que lançava um rápido olhar para a mulher que o desconcertava.

E que tipo de loucura gostaria de fazer Júlio? Posso saber? – perguntou Clara.

Loucuras como aquelas que fazíamos por todos os lugares da casa, meu amor – respondeu insinuante.

Para safadezas ele não me parece nada bobo – observou o sogro num sussurro.

O casal de conhecidos despediu-se em meio a abraços e risadas. Enquanto Júlio pagava a conta, a mulher ao lado ia-se para sempre. Enquanto a mulher ia-se para sempre, Clara saía do restaurante de mãos dadas com um filho e o outro no ventre. Júlio vinha logo atrás e, ao contemplar a família, disse a si mesmo:

Não é bem por causa dos filhos que não a deixa, Júlio, e você sabe muito bem disso.

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