Sobre o que não vemos

Abrir os olhos a cada manhã e deparar com o mundo tal qual ele se nos apresenta parece ser o maior de todos os milagres. A vida por si só é o mais incrível dos espantos e, ainda que tentemos de todas as formas explicar o seu mistério, ele é incompreensível, de modo que nada mais resta a não ser admirá-lo.

Ao acordar, após uma noite imersa no mais profundo sono e inconsciência, algo de belo, insondável e enigmático se revela diariamente diante de nós. E, se temos condições de contemplá-lo, isso se deve tão somente aos nossos sentidos, por meio dos quais quase tudo nos é revelado. Disso resulta que são eles os verdadeiros responsáveis por fazerem com que as coisas sejam por nós conhecidas.

Homem e mulher, macho e fêmea, possui cada qual um órgão que se encaixa naturalmente um no outro. Duas células invisíveis a olho nu se encontram e se fundem dando origem a um ser que, durante os meses seguintes, tem todos os seus órgãos formados à revelia de quem o carrega. O que se passa dentro do ventre independe de qualquer ato do ser que concebe. Tudo é criado, moldado e finalizado sem a sua intervenção ou aquiescência. E nasce-se com olhos que enxergam, com boca sedenta para sugar o alimento que o sustentará pelos próximos dias, com voz que emite o choro antes mesmo do apontar das lágrimas e pulmões que purifica o sopro da vida. Braços, mãos, pernas, coração, cérebro e tantos outros, cada qual com a sua função, mas que juntos dá unidade e completude ao corpo.

O que faz crescer e manter todas as coisas vivas e em funcionamento é invisível a todos os nossos sentidos. No entanto, se não podemos enxergar, escutar e tocar essa força que mantém tudo vivo e em movimento, sabemos que ela existe a despeito de não se mostrar. Portanto, há evidências, embora incompreensíveis e intocáveis, que nos leva a crer numa invisibilidade a qual sustenta e dá forma a tudo que nos cerca. Isso, por si mesmo, constitui uma espécie de milagre dos mais improváveis, pelo menos para o entendimento humano notadamente limitado para conceber a existência de todas as coisas.

A consciência humana não cria um ser no sentido de sua constituição ou formação. Na verdade, o ato de pensar em nada influencia o processo de gerar. Semelhante ao homem, os animais também se reproduzem sem que para isso precisem direcionar pensamentos para formar cada parte do ser que encontra-se em processo de geração dentro de si. A semente que é jogada na terra e faz nascer, crescer e frutificar a árvore também constitui-se mais uma dessas situações inexplicáveis movidas por uma espécie de propulsão inconcebível, caso os resultados não nos fossem visivelmente exibidos.

Perceber e raciocinar sobre tudo o que os nossos sentidos são capazes de captar talvez estejam entre as mais sublimes de todas as coisas. Sem as faculdades de percepção e raciocínio, por mais interessante que fosse o mundo, ele seria desprovido de quaisquer significações. Estaríamos ante um mundo morto, tendo em vista que nós é que lhe damos vida, importância e sentido.

Que o mundo não precisa de nós para existir, isso parece um tanto quanto óbvio, mas é verdade também que sem a nossa existência, por mais belo que ele fosse, não haveria quem o vislumbrasse de tal forma. A maneira como fomos feitos, providos de inúmeras capacidades decorrentes do corpo, o qual é animado por uma espécie de alma que tem condições de significar o mundo no qual ela vive, talvez crie em nós a presunção de que somos o centro do universo, uma vez que não temos notícias de seres que habitam o mundo e deixam suas marcas impressas tanto quanto nós.

Se é verdade que o mundo existiria mesmo sem nós, os humanos, é certo que nossa presença lhe dá relevância, sem a qual ele seria indiferente. Talvez, pensando nisso, Clarice Lispector emitiu a frase: Em vez de dizer “o meu mundo”, digo audaciosa: o mundo precisa de mim. Porque se eu não existir, cessa em mim o Universo.

Em decorrência dessa compreensão, parece-me ser os sentidos, que representam os meios pelos quais concebemos o mundo, grandes milagres de que dispomos ao nosso bel-prazer, salvo nos casos excepcionais em que um ou alguns deles faltam. No entanto, já tive notícias de que quando um sentido é prejudicado, outro se apresenta com mais desenvoltura numa espécie de compensação de desacertos. Beethoven não deixou de compor com a perda progressiva da audição. Provavelmente, diante dessa situação, sua sensibilidade para captar os estímulos tenha aumentado, e ele buscou dentro do seu próprio íntimo as notas de suas composições.

Ocorre que as coisas com as quais já nascemos ou as habilidades que aprendemos em tenra idade são por nós despercebidas de tal modo que não nos atentamos para a sua importância e até mesmo para a sua utilidade. Elas nos pertencem a tanto tempo que nem pensamos o quanto nossa vida mudaria ou seria limitada pela sua perda. Talvez, pensando nisso, Peter Stalybrass, num dos textos que compõe o livro O casaco de Marx, disserta sobre a importância do caminhar.

Aprendemos a andar nos primeiros anos de vida. Durante todo o tempo, essa ação é realizada por nós tão repetida e corriqueiramente que não imaginamos o quão cerceados ficaríamos caso não pudéssemos mais dispor dessa atividade milagrosa. Digo, pois, milagre, porque ao pensarmos bem parece improvável que os pés sejam capazes de sustentar o peso do nosso corpo, sem que para isso precisemos nos socorrer a alguém como fazemos quando crianças ou idosos, momento em que muitas vezes nos apoiamos em outrem ou nos valemos do uso de muletas.

Todo o funcionamento do nosso corpo e por que não de todos os seres e de todas as coisas que existem aparenta imbuir-se de algo que, por ser inexplicável, sempre esteve além de nossa compreensão e entendimento. Assusta-me e ao mesmo tempo inebria-me o processo de criação e manutenção, ainda que temporária, de tudo o que nos cerca. Os olhos que enxergam aquilo que é visível, a possibilidade de ouvir e falar, o olfato que nos anuncia o cheiro de todas as coisas, de modo a nos permitir até mesmo diferenciar o que devemos ou não provar. E as mãos e os braços que acariciam e constroem afetos e castelos e igrejas e palácios. Tudo indica que há uma perfeita conexão a nos guiar e nos impulsiona a criar como supostamente o ser ou poder que nos cria, transforma e recria.

Viver é poder estar diante de todas as coisas e usufruí-las. O principal nos foi dado. Essa gratuidade revela que o essencial não provém de práticas mercantilistas as quais poderiam nos privar, e muito, em termos de nossa constituição básica. Cabe, pois, exercer, da melhor maneira possível, o domínio desse ser por meio do seu uso, gozo e disposição, tal qual uma propriedade que nos é concedida para nos pertencer por um certo período, e sobre a qual direcionamos o mais cuidadoso e atencioso emprego.

O mistério do caminhar abordado por Peter Stalybrass é só mais um dentre os inúmeros acontecimentos milagrosos que nos pairam, no entanto estamos tão rodeados por eles, devido às suas naturezas natural e intrínseca, que acabamos por não percebê-los ou dar-lhes a devida deferência.

Creio que não aproveitamos como poderíamos essas graças que nos são concedidas sabe-se lá Deus por quem. E se não afirmo que elas provêm desse mesmo Deus que sugiro é para não lhes tirar o direito de imaginar de acordo com a própria fé ou falta dela, apenas em respeito ao comando que mais prezo para a minha vida e a dos outros que é a liberdade de pensar.

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