É impossível discorrer a respeito da inveja sem antes voltar ao começo dos tempos para falar a respeito dos irmãos, personagens bíblicos, cuja relação culminou no primeiro homicídio do qual temos notícias.
Caim e Abel dirigiram-se a Deus com as suas oferendas, no entanto apenas uma foi aceita. O Criador rejeitou a oferta de Caim, o que o fez revoltar-se tanto contra Deus quanto em desfavor de seu irmão Abel.
Enfurecido e tomado pela inveja, Caim derramou o sangue de seu irmão, eliminando-o da face da Terra. Ao ser questionado por Deus a respeito do paradeiro de Abel, Caim respondeu-lhe: Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?
A inveja foi a causa desse tão conhecido fratricídio, o que significa que esse sentimento habita o coração do homem há muito mais tempo do que podemos imaginar.
Ela, a inveja, pode ser entendida como a dor e a tristeza que alguém sente diante das conquistas do outro e sempre nasce da comparação entre pessoas próximas. Talvez nunca sintamos inveja da riqueza e do poder do presidente dos Estados Unidos, mas podemos ser tocados por ela diante do triunfo, das habilidades e do sucesso de um irmão, de um primo ou de um colega de trabalho.
O reverso da inveja é o tributo disfarçado, pois invejar significa admitir para si mesmo a própria fraqueza, a incapacidade ou a inabilidade diante da força, da capacidade e da habilidade do outro. O invejoso admira e reconhece as qualidades do invejado, embora jamais admita.
O olho é a porta de entrada da inveja. Não é à toa que um dos amuletos protetores contra esse mal é o olho grego e que a pena atribuída ao invejoso no inferno dantesco é ter os seus olhos costurados para que aprenda a não mais querer para si aquilo que não lhe pertence.
O invejoso está sempre olhando o outro e esse é o motivo porque esquece de si mesmo, de modo que corre o risco de relegar os seus próprios dons e talentos pela cegueira na qual se encontra. Ele está sempre com as vistas postas fora de si.
Outro exemplo bíblico que ilustra a inveja entre irmãos ocorre com os gêmeos Esaú e Jacó, filhos de Isaac e Rebeca. Como Esaú foi o primeiro a sair do ventre de sua mãe, ele herdou o direito da primogenitura, que consistia no recebimento da benção do pai. Acontece que Esaú vendeu esse direito para Jacó.
Um dia, aproveitando-se da moléstia do pai e da ausência de Esaú, Jacó, com a ajuda da mãe, se disfarça, de modo que, assemelhando-se em aparência com o irmão, recebe a benção paterna em seu lugar. Quando Esaú toma conhecimento do que Jacó fizera volta-se contra ele e se torna seu maior inimigo.
Valendo-se dessa história, Machado de Assis escreveu um livro intitulado Esaú e Jacó, cujos personagens, Pedro e Paulo, são irmãos que se chocam desde o ventre materno e toda a trama gira em torno da rivalidade entre eles, que perpassa desde assuntos políticos até amorosos, pois ambos se apaixonam por Flora, mulher que prefere a morte do que ter que escolher entre um dos dois.
A mãe do gêmeos, Natividade, em seu leito de morte, faz com que os filhos prometam se unirem, mas passado um tempo após o enterro da mulher que os gerou, a inimizade entre Pedro e Paulo volta com a força necessária para que eles resolvam disputar a Presidência da República.
Machado retomou o tema da inveja em seu livro Dom Casmurro, onde Bentinho, que acusa Capitu durante toda a sua narrativa, confessa a inveja que sentia da esposa, ao declarar que Capitu era muito mais mulher do que ele era homem. Todas as minhas invejas se foram contra ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?
Shakespeare também abordou esse tema no livro Otelo. O personagem Iago cria expectativas no sentido de ser promovido de alferes ao posto de tenente. Entretanto, Otelo nomeia Cássio, o que causa grande revolta em Iago, que passa a perseguir Otelo a ponto de fazê-lo acreditar que sua esposa Desdêmona o trai com o seu oficial. Movido pelos ciúmes, Otelo mata Desdêmona e, após saber que ela era inocente, mata-se com um punhal. Em um de seus momentos de inveja contra Cássio, Iago dispara: Na sua vida, ele me mostra todos os dias a beleza que me torna feio.
Iago reconhecia que tanto Otelo quanto Cássio possuíam qualidades e virtudes que lhe faltavam e isso não só o conduziu à destruição dos seus invejados, como também a prisão de si próprio.
Já no filme Amadeus, o músico Mozart é o invejado da vez. Com um talento incomum e com a habilidade para compor de forma excelente, sem nem mesmo ter que recorrer a rascunhos, Mozart é alvo da fúria e da inveja de Salieri, que termina seus dias num manicômio quando se vê diante da grandeza e da genialidade do seu rival.
E por falar na genialidade que suscita tanta admiração e inveja, Oscar Wilde proferiu a frase: Como não foi genial, não teve inimigos.
Mas diante de tantos casos de inveja expostos, pergunto: Como se livrar dos invejosos? E a resposta é: Não há saída possível. Eles são numerosos e estão por toda parte, então é melhor fingir que não os vemos, de modo que a nossa vida seja tão brilhante que ofusque os seus olhos tornando-os tão mais cegos do que eles já são.
Excelente texto. Vergonha e Inveja, dois temas que movimentam a Literatura desde os primórdios.
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