Quem vê os closes, não vê as quedas

Lembro-me agora de um episódio que me ocorrera quando criança. A casa de minha mãe e a de minha avó localizavam-se na mesma rua, a poucos metros de distância uma da outra, de modo que transitava o dia todo para lá e para cá, andando ou correndo.

Na calçada da casa de minha avó reuníamos toda a família ao fim da tarde para conversar, relembrar casos, dar risada, tomar café, e por que não brigar?

Mas lembro de que no mais das vezes ríamos muito. Ríamos tanto que alguns envergonhados mudavam de rota para não passar frente a nós devido à desconfiança de que poderíamos inclusive rir deles.

Numa dessas tardes, dirigi-me à casa de minha mãe para tomar banho e logo após retornar à da minha avó. Banho tomado, eis que quando tento ultrapassar a calçada meu pé direito esbarra no meio fio e caio indefesa.

Senti que não me ferira, mas meu primeiro pensamento foi de ficar imóvel e inventar a quem viesse ao meu encontro que havia me machucado, apenas para justificar a permanência no chão como quem desmaia.

Todos ririam de mim se não atuasse, se demonstrasse que estava tudo bem e que não havia passado de uma queda boba. Mas como havia fingido algo mais grave vieram ao meu encontro com ar de muita preocupação para me salvar.

Sempre vi pessoas rirem dos tombos dos outros antes mesmo de oferecerem ajuda ou mesmo checarem se haviam se machucado. Eu nunca entendi porque pessoas caindo provocam tantos risos.

Existia um programa de televisão exibido aos domingos que destinava um bom tempo à exposição de vídeos em que pessoas caíam das mais diversas maneiras. A audiência ia a mil, arrancava gargalhadas dos expectadores, alguns chegavam a considerar o ápice do programa, a melhor parte.

Mas de mim, ele não arrancava sorrisos, pois só pensava o quanto elas deveriam se machucar, e isso não poderia ser motivo de alegria para ninguém. Só mais tarde eu própria ri de certas quedas e também das minhas, sem que jamais tenha compreendido por quê.

Era carnaval, primos, amigos e eu estávamos esfuziantes. Andávamos com os braços cheios de pulseiras luminosas e de todas as cores. Seria nosso primeiro carnaval descendo às ruas atrás de um trio elétrico. A própria cidade não suportou o peso da felicidade de seus habitantes e um apagão tomou conta de tudo.

Caminhávamos e dançávamos no breu, iluminados apenas pelas pulseiras, cuja luz não foi suficiente para me deixar entrever um toco de madeira fincado no chão. Meti-lhe a canela e caí longe. Eu e minhas pulseiras que foram parar a metros de distância de mim. É claro que todos riram em meio ao sangue que jorrava.

Levantei-me, a energia elétrica novamente deu luz à cidade e curti a festa durante toda a noite. Só no outro dia senti a dor do ferimento e fui tratá-lo. A cicatriz dessa queda permanece como para lembrar-me que em meio à alegria algo de inusitado pode acontecer e nos marcar para sempre.

Mas não me lembro de ter caído durante os treze anos que morei em Brasília. Em Brasília, não caí uma só vez. Era como aquelas árvores que “envergam, mas não quebram”. De onde tirei tanta firmeza até hoje não sei. Mistério!

Mistério também é eu ter começado a cair novamente ao voltar à Bahia. Na casa de minha mãe levei um tombo na cozinha. Julguei-a culpada, porque o chão já estava brilhando de limpo e ela jogava água pela décima vez. Ela me acusou de volta: “É você quem não deveria andar de pés descalços pela casa.” Não sei quem de fato teve culpa. Só sei que caí.

Recentemente passei alguns dias em Brasília e aproveitei para visitar os familiares em Goiânia. Na casa de minha tia levei um tombo na cozinha molhada e escorregadia. Estava com dois livros, um em cada mão, e não tinha onde me apoiar. Caí como quem mergulha. Rimos da cena depois. Eu me levantei, me arrumei e fui passear pela cidade. Ao ver as fotos do passeio, a tia comentou: “Quem diria que havia caído horas antes.” Eu respondi: “Pois é tia. Quem vê meus closes, não vê minhas quedas.” Gargalhamos muito.

Mas veja, minha passagem por Brasília se deu sem quedas. Em Goiânia, assim que cheguei fui arremessada no chão. Não entendo. Vou parafrasear Clarice Lispector: “Em Brasília, tenho resistência física, enquanto na Bahia e demais lugares sou meio mole, meio doce.” Essa moleza tem sido meu álibi.

Agora mesmo escrevo com o joelho ferido e arranhado de mais uma queda. Começaram as festas juninas aqui pelas bandas do interior da Bahia. E eu que não ia na de ontem, resolvi de última hora comparecer – e com salto alto. Mas o salto nunca foi um problema, eu que dele me utilizo desde os quatorze anos de idade. Só que não fui feliz na escolha do modelo. Minto, fui feliz porque sorri e dancei durante toda a noite, invadida por um estado eufórico de felicidade que não dava sinais de futura tragédia.

Só que ao término da festa resolvi soltar a fivela que mantinha o pé firme na sandália. Despedi-me dos amigos e, sozinha, andava em direção ao carro. Eis que atravessando a rampa de paralelepípedo na saída do local da festa, o calçado vira, perco o equilíbrio do corpo e caio no chão na frente de todos. Parecia Maria Madalena ajoelhada em meio à multidão.

Um homem correu ao meu encontro para prestar auxílio, me estendeu a mão, de modo que consegui me levantar apoiada nele. Ainda consegui ver o espanto nos rostos de algumas pessoas ao meu redor. Mas para minha surpresa não tive vergonha de ter caído.

Perguntei ao mesmo homem que me ajudou a levantar se poderia me conduzir até o carro. Ele estendeu o braço e enquanto caminhávamos me perguntou se teria condições de dirigir. Disse que sim, que caíra por conta da sandália,e não havia bebido. Pensou que poderia estar bêbada. Percebi.

Cheguei à casa, tomei remédio para a dor que ameaçasse vir e dormi profundamente. Só no outro dia lavei e cuidei do ferimento. Deitei-me no sofá assim que acordei, abri um livro em que Clarice Lispector diz: “Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando.” Coincidência? É e não é. Mas parece que a vida é esse eterno cair e levantar.

Levantei-me e estou aqui pensando no quão gentil foi o homem que me ajudou. Agiu com uma delicadeza que ainda agora me emociona. Disse-me coisas assim: “Isso acontece”, “dos males o menor”, “a senhora tem condições de dirigir?”, “vou ajudá-la a tirar o carro desse lugar apertado para que não corra o risco de bater nos outros que estão em volta”, não acreditando que eu não estivesse bêbada.

Ainda sinto a firmeza com que segurou meu braço e me conduziu para eu não cair de novo… Tudo isso porque na minha fraqueza lhe pedi ajuda e o fiz herói, grande e forte.















Tentativa

Sou escritora do meu tempo. Quero dizer, da época em que vivo. Escritora, humana, sujeita às distrações, aos vícios e às mazelas que podem nos furtar de nós. Entregue aos prazeres do corpo e da alma, às alegrias, à vã promessa de felicidade que, sei!, jamais chegará e cujo saber orienta a busca inalcançável.

Estou nas ruas e nas redes. Facilmente encontrável e abordável. Respondo mensagens que recebo, assim que as recebo. Não faço poses, salvo para fotos. Diante do outro que me solicita sou sua igual.

Sento-me com amigos leitores para tomar café, cerveja, vinho, drinks. Água. Papear. Falar sobre vida, amores, sonhos, medos, pavores. Tenho coragem de estar frente a frente com quem me lê e perscruta os segredos que não conto para mim mesma.

Numa mesa de bar, um leitor me intimou: “Estou esperando você dar a volta por cima.” E ainda fez essa observação: “Às vezes não parece que foi você quem escreveu determinado texto. Eu te conheço de perto, sua alegria, e não me parece que tem a intensa capacidade de sofrimento que expressa naquilo que escreve.” E fez a pergunta: “Não acha que cultiva certo drama apenas para escrever? Um certo charme, um jogo de escritora…”

Acontece que eu não seria dramática na arte se também não o fosse na vida. Concordo, quase sempre estou muito alegre, o que também não impede que por dentro esteja vivendo meus dramas. Sou muito verdadeira enquanto escrevo e se o texto se apresenta com determinada carga de sofrimento é porque naquele instante da escrita, rápido, fugaz, instantâneo, mas autêntico, estava de fato mergulhada naquele estado de espírito.

A exemplo, quando escrevi “Dilúvio”, publicado no livro “Eu passarinho!”, parecia que as lágrimas não secariam jamais. Nas primeiras aulas de Psicanálise fui descobrindo coisas que estavam inconscientes e que emergiram sem eu ter me preparado para tanto. De repente me veio uma enorme sensação de desamparo que abriram todas as comportas de águas existentes e inexistentes dentro de meu ser. Meu Deus!, pensei, que farei de mim? Então escrevi sobre o que me invadiu naquele momento.

Horas depois já estava caminhando pelas ruas, sentindo o ar no rosto e pensando o quanto a vida é mágica e maravilhosa. Horas depois cantava e dançava pela casa sorrindo para as paredes. Horas depois havia colocado a roupa mais bonita, salto alto e batom vermelho e saía para um delicioso e alegre jantar.

Quem me visse diria que eu não havia sofrido minutos antes. Mas eu havia. É Clarice Lispector quem diz: “Quem é capaz de sofrer intensamente, também é capaz de intensa alegria.” Sou capaz de experimentar o céu e o inferno sem perder o brilho nos olhos.

Dizem que o drama é característico do signo de leão. Sou leonina. Dramática, excessivamente vaidosa, ferozmente orgulhosa. Apesar de que descobri recentemente: não sou uma coisa nem outra.

É que nasci em 22 de julho, cúspide de câncer e leão. Parece que posso ser as duas coisas ou nenhuma delas. Tudo ou nada. Vi uma explicação assim para definir o que é essa tal de cúspide: imagina uma pizza cortada em pedaços. Quem nasce na cúspide não é nem um pedaço nem outro, está ali no corte entre um e outro.”

Estou no abismo. Sou abismal. E nem posso dizer que a culpa é do meu signo, porque não sei qual deles.

Para esse leitor que quis saber quando darei a volta por cima, sem que eu saiba exatamente o que isso significa: Bem, não sei.

Escrevo, escrevo e escrevo. E se isso não é dar a volta por cima, que pelo menos seja visto como uma fracassada tentativa.

Mulher versus mulheres

Ainda não podemos afirmar que tipo de vida uma mulher deve ter para ser minimamente compreendida e aceita. Mas tenho certeza de que, no momento em que ela diz não para namoro, casamento e, sobretudo, maternidade, ela não é de modo algum aceita. E ouso dizer: principalmente pelas outras mulheres. E digo mais: principalmente pelas mulheres cujas vidas giram em torno de um homem e dos filhos.

A maioria delas jamais compreenderá alguém que tenha outros sonhos e que se sente alegre e feliz abrindo mão de tudo aquilo que para elas constituem a própria vida. Quem nunca ouviu uma mãe dizer: Meu filho é minha vida? Quando ouço tal afirmação só me vem à cabeça esse questionamento:

E quem elas eram antes do filho? Nada?

Pois bem, meus pensamentos nunca orbitaram em torno de casamento e maternidade. Criança, adolescente, adulta, em nenhuma dessas etapas persegui tais destinos. Pensava que se conhecesse uma pessoa que me despertasse para o compartilhamento de uma vida isso ocorreria naturalmente. Juntaríamos nossas coisas, habitaríamos o mesmo espaço e dividiríamos bons e maus momentos.

Quanto à maternidade, nunca senti desejo de ser mãe, o que por si só basta para que não seja. Além do mais, a espécie de maternidade a qual imagino que gostaria de exercer não seria possível diante da vida que levo. A atenção, o cuidado e a educação que gostaria de oferecer a um filho seriam impraticáveis, salvo se não trabalhasse ou caso tivesse jornada de trabalho reduzida pela metade. Não gostaria de terceirizar essa função a desconhecidos nem que meu filho fosse criado pela avó. Jamais porque a avó não seja a pessoa indicada, mas para não lhe impor responsabilidade que seria minha.

Também a liberdade que gosto de usufruir seria fatalmente prejudicada. Um filho costuma ocupar demais a cabeça de uma mãe, de modo que muitas vezes ela não consegue estar onde realmente está. E preciso estar em mim na maior parte do tempo.

E mais, em determinadas situações acho tão difícil carregar o peso de nossas próprias preocupações e angústias que não consigo me imaginar tendo de lidar com as frustrações e as dores de um filho que eu amaria tanto e faria de tudo para poupá-lo.

Definitivamente, a função materna não é para mim. E nada tenho contra. Pelo contrário, admiro quem renuncia tanto de si em prol do outro. Ser mãe é sacerdócio, é sacrifício. Pode ser de uma nobreza incomparável, mas satisfaço-me em me dedicar a outras coisas que talvez não sejam tão nobres, no entanto me dignificam e me realizam.

Ocorre que uma mulher pode gozar uma vida fenomenal, trilhar uma brilhante carreira, possuir um talento incomum, dedicar-se a atividades que animam seu espírito, desenvolver um intelecto admirável, ter imensa capacidade de amar outros amores, se deliciar com as próprias escolhas, contemplar interiormente o seu percurso e pensar “quão magnificamente vivo!”, mas se ela não tiver um homem ao seu lado e filhos que a qualifiquem e a legitimem parece que tudo o mais não é o bastante para se afirmar mulher.

Precisamos acabar de uma vez por todas com a ideia de que a mulher não pode optar por outros caminhos, inclusive ficar sozinha. Afinal, “a solidão é um luxo”, diz Clarice Lispector. A solidão não é nada ruim para quem tem a si mesmo em verdade, gosto e profundidade.

O mundo é dotado de enorme diversidade, mas a mentalidade humana pode ser de uma pobreza sem igual, quer se firmar nos mesmos e conhecidos caminhos. E o que é pior, quer fazer os outros acreditarem que as próprias escolhas são as mais acertadas e por isso devem ser seguidas.

Por que a necessidade de convencer os demais a seguir o destino que seguimos? Porque quando isso ocorre, valorizamos mais a nós mesmos. Se o outro faz o que eu faço, confio mais em mim, confirmo que estou certo e me reafirmo perante a minha própria pessoa. Puro sentimento egóico de autoafirmação. Ernest Becker diz nesse sentido: “Ver os outros como iguais a nós é acreditar em nós mesmos.”

A vida comporta muito mais. A mulher pode ser livre para viver de acordo com o próprio desejo e vontade desde que tenha coragem de dizer não a tudo que lhe querem impor. Não é fácil nadar contra a correnteza, mas como cantou Cazuza, serve para exercitar os músculos. “Pro dia nascer feliz” é preciso ter pulso para bancar o que se quer, olhar-se no espelho e dizer: “Essa é a vida que eu quis”.

No conto “Trecho”, de Clarice Lispector, Cristiano avisa a Flora que a vinda dele até ela constituirá o grande fato de suas vidas. Ela dirige-se a um bar e fica horas e horas esperando por ele. Quando o garçom lhe pergunta se quer um refresco, responde: “Eu não quero refresco, eu quero Cristiano.” Enquanto o aguarda pensa e repensa a própria vida. Tem uma filha. Acabará abandonada como tantas outras mulheres com seus filhos?

Quando criança, Flora brincava de tudo, até de soldado. Um professor de francês lhe disse que ela poderia ser poeta. A mãe sentenciou que Flora prenderia quem bem quisesse. Ela sabia fazer muitas coisas e muito bem feitas. No entanto, estava ali parada lembrando-se da filha que deixara em casa e à espera do amante.

Flora relembra um episódio em que avista uma mosca rondar uma xícara de chá: “porque é que possuindo um belo par de asas não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou sem ideal as moscas?”

Por que as mulheres não voam mais alto? Impotência ou falta de ideal?

Ela sabe que poderia muito mais do que ficar à espera de um homem. Diz estar pronta para a vida, diz ser superior porque sabe que existe. Tem dimensão do quanto tem condições de voar alto, mas está ali desolada num bar enquanto o homem não chega.

Ela se diminui ao tamanho da filha a que chama Nenê. Diz-se pequena, reduz-se para caber apenas nos braços de Cristiano.

E ao pensar no quanto seu destino poderia ser diferente, ela se resigna: “É que em vez de gritar, de reclamar, só tenho vontade de chorar bem baixinho e ficar quieta, calada.”

Cristiano chega e Flora já não pensa em mais nada.

O casamento pode ser um caminho. A maternidade outro. Mas não são os únicos. Existe outras maneiras de se realizar. Uma mulher pode perfeitamente dizer não a tudo aquilo que a maioria espera dela, mas precisa dizer sim ao que ela espera dela mesma.

O preço a ser pago por ceder às pressões dos outros pode ser muito alto e até impagável. Se tivermos que bancar algo que seja em virtude de nosso mais genuíno querer e não proveniente da vontade alheia.

Se tiver que comer uma fruta proibida que seja a escolhida por si mesma, e não a oferecida pelas outras Evas, afinal de contas elas só nos dão maçã. E há muitas frutas mais saborosas e suculentas por aí. A maçã é só uma entre tantas. E quer saber? É a fruta de que menos gosto.

Vida fitness

Escrevo por liberdade e só na hora em que tenho vontade. Há pessoas que dizem que gostaria de viver do produto de sua arte, ganhar dinheiro suficiente por meio dela para não ter de fazer outra coisa. Eu não. Caso tivesse de escrever por motivo de subsistência me sentiria compelida a criar alguma coisa quando meus recursos dessem mostras de minguar. E tudo que não desejo é ser obrigada. Pelo contrário, agradeço o fato de minha sobrevivência vir de outra fonte e assim escrever só nos momentos do meu exclusivo querer.

Também não escrevo por encomenda, salvo raríssimas exceções. De vez em quando uma pessoa ou outra me diz “escreva sobre isso” e, se é uma pessoa da minha estima, eu acabo escrevendo. Eu gosto de servir aos que gosto com prazer.

Certa vez um amigo de infância me pediu para escrever sobre o choque elétrico de uma porquinha. Escrevi. Agora fui instada a escrever sobre um tema que está em voga: vida fitness.

Ao me encontrar com um colega de trabalho num restaurante, ele deu queixas de dores no corpo em virtude de ter iniciado aulas de ginástica e musculação. Minha resposta: “Estou abusada de academia. Vou um dia e falto nove.” Ele propôs: “Escreve sobre isso.” Olha eu, mais uma vez, obedecendo.

Acontece que já tive por quase quatro anos uma vida alimentar e de atividade física absolutamente regradas e cronometradas. Chegava a frequentar a academia duas vezes ao dia, a qualquer hora, aos finais de semana e feriados. Eliminei da dieta o açúcar, os produtos industrializados e todas aquelas guloseimas que nos dão um prazer quase orgástico quando adentram nossa boca. Emagreci, ganhei músculos, a barriga diminuiu bastante, embora nunca tenha zerado. Tive uma vida fitness que foi eterna enquanto durou, mas agora estou noutra “vibe”, como dizem por aí.

Confesso que me cansei do ambiente de academia e cansei ainda mais dos movimentos repetidos. Odeio a repetição. Cheguei a me questionar em alguns momentos em que descia até o chão com as pernas arreganhadas e a barra de ferro nos ombros: “Oh my god, o que estou fazendo aqui?” Quer saber? Desisto. A desistência, como diz Clarice Lispector, é uma espécie de revelação. Então, revelo-me.

Quanto ao aspecto da nutrição, sem muitos dilemas. Não tenho nenhuma tara por comida e prefiro alimentos salgados a doces. Não sou maluca por chocolate ou sobremesas em geral. Acho chique comer pouco e adoro o arroz com feijão de todo dia. Apenas o cafezinho precisa conter açúcar, porque acho mais gostoso e me dou o direito a esse luxo. Eu mereço.

A desistência a uma “vida fitness” pode durar pouco, como pode durar o resto dos meus dias. Mas sou vaidosa por natureza. Tenho meus cuidados para não sair totalmente do prumo.

Lembro-me da cantora Marília Mendonça que, num vídeo gravado dentro do avião, poucas horas antes da queda que veio culminar em sua morte, comia uma maçã e outros alimentos integrais, e lamentava-se chegar a Minas Gerais e não poder se deliciar com as saborosas comidas típicas da região, uma vez que precisava seguir o script da dieta.

Bem, se passasse pela cabeça que aquela seria sua última refeição teria escolhido comer o quê? Não saberemos. Mas creio que não comeria uma maçã.

Em hipótese alguma faço apologia aos excessos ou para que as pessoas liguem o “foda-se” e não façam dietas ou exercícios físicos. Longe de mim. É importante se cuidar. Mas também é importante se dar folga e descanso de certas coisas. Eu estou me dando um tempo para ficar de pernas para o ar. Quanto tempo? Não sei.

Só que não vou mentir. Ando meio preguiçosa e até quis me justificar pelo lugar onde moro atualmente: “Ah mãe, depois que cheguei na Bahia tô meio assim molenga”. Minha mãe, que nada deixa passar: “Você já estava assim em Brasília.”

Quer saber? É isso mesmo. Estou é com preguiça. Cheia de manhas e artimanhas, como me disse um amigo. Não vou ficar justificando o injustificável. Vou é resolver esse blá blá blá com uma frase da minha amiga Clarice, que me entende muito bem:

“De agora em diante eu gostaria de me defender assim: é porque eu quero. E que isso baste.”

Cansei de vida fitness. Quero vida sem adjetivações.

Mulher gostosa

Quando alguém me dizia que sou bonita ou linda meu primeiro impulso sempre fora no sentido de sutilmente discordar: Ah, são seus olhos! – dizia sorrindo.

É que nunca me achei bonita ou linda. E não! Não tenho nenhum problema de baixa autoestima. Gosto de mim. Jamais quis alterar algo que vem de mim para mim ao contemplar o espelho. Na verdade, tenho a impressão de que só poderia ser fisicamente como sou. Nada deveria ser diferente.

Digo com muita sinceridade, se me fosse dada a chance de mudar algum aspecto físico não mudaria absolutamente nada. É como se o exterior apenas refletisse meu interior.

O que mudou é que agora já não recuso mais os elogios, pois aprendi que não devemos negar a alguém o direito de nos admirar, mesmo que não concordemos, pois agir dessa forma é como podar a alegria do outro de nos oferecer algo. É privá-lo da satisfação de se sentir bom e generoso por doar, ainda que seja elogio.

Diante de alguém que diz que sou bonita ou linda, agora respondo: Obrigada! Recebo e agradeço. Retribuo com um sorriso. E só.

Mas se não me acho bonita, tampouco me acho feia. O que sou? Sou.

O psicanalista Ivan Capelatto deixa muito claro que a autoestima está relacionada ao sentimento ético que nutrimos por nós mesmos e não ao sentimento estético. Algo no sentido da potência que vem da forma natural de ser.

“Quem tem autoestima não tem orelha grande, cabelo feio, nariz grande, celulite, seio pequeno. Tem vida. E tem a vida do outro. Cuida de si e cuida do outro”, acrescenta Capelatto, que também diz:

“O belo é eu suportar minha feiura.” Suportar o que é naturalmente nosso.

Imagina o quanto deve ser difícil para alguém achar que seu valor está na estética corporal e vê-la se definhar pelos quilos a menos ou alterar pelos quilos a mais ou pela própria velhice contra a qual não podemos lutar sem que pareçamos um pouco ridículos e antinaturais.

Dei para dizer que imagino ter “uma coisa”, algo que pode atrair, chamar a atenção, interessar. Essa coisa não tem nome. Ela fica no ar, no invisível. Essa coisa não tem corpo, está além do corpo e a ele sobrevive. Tanto é que no livro “O amante”, Marguerite Duras narra um episódio em que um homem se sente seduzido por ela, e lhe diz achá-la mais atraente na velhice do que na mocidade:

“Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando era jovem, eu vim para lhe dizer que, para mim, é mais bonita agora do que quando era jovem, eu gostava menos de seu rosto de moça do que esse que você tem agora, devastado.”

O cirurgião plástico Ivo Pitanguy afirma que há muito mais coisas numa mulher que podem chamar a atenção. Não nega que a beleza atrai, mas ela não sustenta a si própria. Ele, que passou a vida a tentar tornar as pessoas mais belas dentro do conceito que elas mesmas tinham de beleza, declarou com aquele olhar de quem enxerga além do que se vê:

“O poder não tem corpo”.

No conto “Obsessão”, de Clarice Lispector, a personagem Cristina abandona o marido e os pais ao ficar hipnotizada por Daniel. Seu fascínio por ele é expresso nessas falas:

“Do primeiro Daniel nada guardei, senão a marca.”

“É que ele me dominava de tal forma que, se assim posso dizer, quase me impedia de vê-lo.”

“Eu assim apenas possuía suas palavras, a lembrança de sua alma, tudo o que não era humano em Daniel.”

Cristina não conseguia sequer rememorar o rosto daquele por quem teve a coragem de abandonar tudo. Após deixá-lo e narrar a história entre os dois mal conseguia se lembrar dos traços físicos de quem tanto lhe encantou.

Um amigo, que me confessou ficar ansioso sempre que marcamos de nos encontrar, uma vez que adora conversar comigo por horas, diz: “Corpinho e rostinho bonitinhos tem aos montes por aí, mas alguém com quem vale a pena eu sair de casa e me dispor a bater um papo é muito raro.”

Num diálogo com um homem que disse ter gostado de mim, pelo motivo de eu ser “sedutora”, termo que usou para não se utilizar de outro, “gostosa”, confessado depois, questionei-lhe o que uma mulher tem que ter para que ele considere “gostosa”. A resposta não teve nada a ver com silhueta, curvas ou músculos. Ele disse:

“O jeito de ser e de fazer”.

Dizemos que uma comida é gostosa, pegamos a comida, levamos à boca, provamos, degustamos algo físico, material, com sabor.

E a mulher “gostosa”, para ele, é aquela que seduz pelo jeito de ser e de fazer. Onde está o corpo? Ele desaparece por completo.

O médico Ivo Pitanguy era um homem sensível, inteligente e experiente. Passou a vida realizando cirurgias plásticas em mulheres que super dimensionavam o físico. E ele deu um recado que, de certo modo, contraria um resultado que porventura algumas mulheres poderiam esperar de seu trabalho, o de que elas tivessem os seus poderes aumentados por um silicone ou pela retirada das gordurinhas.

Portanto, fundamental mesmo é que todos saibam que “o poder não tem corpo” e “mulher gostosa” é aquela que é.

Ah, os Homens!

Não sei que tipo de fascínio uma mulher que escreve, e escreve bem, exerce sobre o imaginário dos homens. Temo que alguns leitores estejam confundindo o autor (que sou eu) com a obra (que é também minha) e comecem a atribuir a mim qualidades e defeitos de meus textos como se fossem características de minha própria pessoa.

Não nego possuir qualidades e defeitos. Estes, então, tenho aos montes. Mas não quero ser confundida por uma questão de respeito.

Quando escrevo estou me revelando, mas não se enganem de supor que eu esteja me desnudando totalmente. Eu só mostro é a pontinha do calcanhar como uma mulher da belle époque, pois minha intimidade é guardada a setenta e sete chaves.

Um de meus leitores me mandou e-mail dizendo-me que quer me conhecer pessoalmente porque tenho um jeito de escrever que insinua e provoca e, portanto, imagina que eu seja tão insinuante e provocativa quanto o que escrevo. Ainda acrescentou: “Quando você põe uma vírgula sigo sem respirar e quando você põe um ponto final fico à espera… “

À espera de que, meu Deus?

Como fico diante de uma revelação dessa? Como dizer a ele para não esperar nada de mim? Como afastá-lo de suas ilusões sem parecer deselegante e sem distanciá-lo?

Olha leitor, não pense você que escrevo com ares de sedução como bem insinua. Se a intenção fosse mesmo provocar, eu escreveria com as pernas que abrem e não com as mãos que batem. Peço que não confunda as coisas e nem seja metonímico a ponto de se embaraçar sobre quem de fato sou. E, por favor, esquive-se de me fazer acreditar que sou as palavras que digo. Elas dizem muito pouco. Se eu começar a ser reduzida a elas, sou capaz de parar de escrever.

Em outro e-mail, um leitor disse-me: “Ana você deixa um clima de suspensão no ar e eu fico doido pelo seu final, sua conclusão, seu clímax.”

Sinto muito lhe dizer, querido leitor, mas se você tem ficado doido para que eu me conclua, provavelmente vai parar num hospício. Só tenho controle é no momento do começo. À medida que vou indo, entrando por becos e labirintos, a última coisa que vislumbro é chegar ao fim. Mas, desista de mim não.  Vamos percorrer caminhos desconhecidos. Eu te levarei a lugares que nem sei. “Perder-se também é caminho”, como diz uma amiga. Que tal se perder comigo?

Com relação a uma mensagem que recebi de outro leitor, fiquei realmente em dúvida se era convite, cantada ou espécie de devaneio.

Ele comenta que quando conheceu os meus textos começou a ler, um por um, até que chegou na resenha sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, e ficou hipnotizado.

Então, me mandou isso: “Quando virá a São Paulo? Que tal a gente tomar uns drinks enquanto você lê Machado de Assis?”

Vai ver que ele está me confundindo com a própria Capitu.

Caro leitor, o que tenho a lhe dizer daria para um capítulo, mas não vou me delongar. Talvez a única coisa em comum que tenho com Capitolina sejam “seus olhos de ressaca”. Quanto ao mais, não vejo semelhanças.

Como ela foi capaz de se ligar a um homem como Bentinho que só nos legou as impressões equivocadas e cegas que tivera dela? Eu é que não admito definições. Não me reduza à imagem que tem da Capitu. Tome seus drinks sozinho, pois sou matéria para mais de um volume literário e você deve ser como os Bentinhos da vida que são incapazes de perceber isso e acham que um “drink” resolve tudo.

Tenho um leitor que costumava comentar meus textos e, de repente, sumiu. Dessa vez, eu é que fui até ele: “Você parou de me ler?”

“Você é muito complexa.”

Eu disse: “Sou tão simples quanto a comida que se põe à mesa.”

Ele: “A mesa do Pobre Juan? Do Oliver? Do Gero? Do Taypá?” E começou a elencar os restaurantes mais caros e sofisticados de Brasília.

Acho que entendi o que ele quis dizer.

Não se engane, leitor. Eu sou para a mesa de todos esses restaurantes sim, mas também para o “Fogão à lenha”, “Arroz, feijão e bife”, “Marmitinha do Zé”, “Comidinha Caseira”.

Amados leitores, eu sou e escrevo simples, nu e cru. Vocês é que estão complicando as coisas.

O Livro e eu

Quero fazer minha a declaração da escritora Marina Colasanti: “Costumo dizer que fui mais formada pela leitura do que por escola ou família. A leitura foi sustentação e argamassa na construção da mulher que sou hoje”.

Li num livro, o qual já não me lembro, que uma das razões que pode levar alguém a se interessar pela leitura relaciona-se à ausência do pai. Como a figura paterna representa uma espécie de autoridade, a sua falta pode fazer que a pessoa busque noutro lugar suprir essa presença que culturalmente tem por função a imposição de limites ou a própria Lei.

Não sei até que ponto isso se constitui verdade. Mas quando li não deixei de pensar em mim cujo interesse pela leitura sempre me pareceu relacionada, de algum modo, ao meu pai.

Cresci sem ouvir “não” de homem algum e nem mesmo a tão falada proteção e segurança que um pai costuma destinar aos filhos, principalmente quando se trata de menina, foi a mim direcionada.

Não tenho na memória os registros do calor de braços fortes a me segurarem, quer por amor ou cuidado. As lembranças do meu pai estão ocupadas pelo vácuo impreenchível ou por pensamentos de como seria minha vida se ele tivesse sido presente. Nunca saberei como nunca aceitei no mais fundo de mim o fato de não tê-lo.

De todo modo, o vazio de um falta provavelmente me lançou nos braços dos livros. E fui totalmente invadida pela desmedida ânsia de saber. Os livros me alicerçaram, me construíram de tal forma que posso furtar as palavras da escritora Nélida Piñon: “Sou filha de minha mãe e dos livros que li.”

Não posso me transformar em pernona non grata e dizer que a família em nada me acrescentou. Os valores do respeito, da honestidade, do trabalho e da dignidade eram por demais transparentes para que não os notasse. Embora vivesse na simplicidade, a família possuía o brio necessário para bem criar filhos. Negar que tudo isso me foi repassado por puramente observar os atos e a forma com que viviam seria cometer tremenda injustiça a que não ouso.

No entanto, inveja, ira, ciúmes, competições, fofocas, malícias e maledicências constituem o outro lado que também apreendi no universo familiar e que busquei durante todo o tempo combater com as forças de que dispunha.

A mediocridade espreita as relações humanas e senti, ainda criança, que não poderia render-me a ela. Eu via o excesso de intimidade arrastar os limites dos contornos a que não seria permitido avançar sem que me sentisse de certo modo agredida. Tornei-me arisca. Recuei.

Os livros também representavam uma fuga desse mundo por demais familiar e íntimo onde todos se metem em tudo e contra todos, salvo as evidentes preferências que se estabelecem entre uns e outros e que torna-se impossível disfarçar.

No final das contas, ninguém disfarça simpatias e antipatias. É como diz Freud: “Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos.” Também não conseguia esconder que tudo aquilo me desagradava, e muito!

A leitura sempre pareceu me salvar de algo que poderia absolutamente me confinar e limitar. Era a transcendência, afinal. E não posso deixar de reconhecer que ela se constitui mesmo a base que me constrói.

Admito que a escola pública, embora com suas limitações, teve papel importantíssimo em minha instrução como também os professores que respeitava e admirava e que tão bem souberam reconhecer e afirmar a inteligência que supunham que eu tivesse desde muito cedo.

Mas são os livros que verdadeiramente sustentam minha formação. Sou a prova viva de que uma pessoa até pode sobreviver sem um pai, mas não sei se poderia afirmar isso se também me privassem os livros.

Arte e técnica

Uma das realidades com que me deparei no serviço público foi a quase generalizada INSATISFAÇÃO. Nos primeiros anos, também a experimentei. E achava que “o problema” estava na empresa, até entender, bem mais tarde, que “o problema” estava em mim.

Sempre gostei de escrever. É o que faço com maior facilidade, alegria, gosto e prazer. E a empresa sempre me deu a oportunidade de trabalhar exercendo minha vocação, vocare, chamado, talento, dom. Assim que entrei, já me destinou para a área de elaboração de normas, aproveitando-se de minha capacidade textual e dos meus iniciados conhecimentos de estudante de Direito.

Todos me diziam o quanto eu escrevia bem. Todos supervalorizavam meu manejo linguístico. Falavam abertamente o quanto gostavam do meu trabalho. Só uma coisa contra mim eles tinham. O mesmo que tenho em meu favor: não domino os joguinhos dos poderes político e econômico. Não sei lidar com “tapinhas nas costas” ou coisas do tipo. Meu jogo é outro. É o das palavras. Então, a empresa me abriu todas as portas que eu quis para trabalhar manejando a palavra. Tudo que consegui na vida foi seduzido e conquistado pelo Verbo.

E ainda assim, eu não estava de todo satisfeita. Por quê? Teria de mudar de emprego?

Até que a escrita literária surgiu na minha vida. E eu entendi que adorava escrever notas técnicas sobre correição, mas eu também precisava de algo a mais para exercer a inteligência, a criatividade e a inventividade. Ah! E as sensibilidades!

Lembro-me de que às vezes, embaixo do chuveiro, me vinha toda a construção verbal de uma nota referente a um processo disciplinar que estava sob minha análise. Escrevia de um só fôlego e era a glória.

Mas no serviço público, qualquer que seja ele, estamos submetidos à burocracia, hierarquia, leis, normas, horários. Por outro lado, temos direitos bem legais: descanso, férias, bom salário, folgas e outros. São dois lados da mesma moeda.

E por que a insatisfação? Porque só a atividade pública não me bastava. Eu precisava de arte. Precisava criar algo que não ficasse esquecido e arquivado “nas nuvens” como aquelas notas técnicas que elaborava e que eram tão elogiadas, mas caíam muito rápido no esquecimento.

Então veio a publicação de livros. Esse universo paralelo que me inebria, empolga e alegra tanto. Esse mundo tão vasto e infinito onde posso falar sobre tudo, sem submissão a nenhuma autoridade e sem o crivo da lei.

Aí fiquei em paz no trabalho e na vida, pois consigo me satisfazer tecnicamente, escrevendo, e artisticamente, escrevendo. É que, sem modéstia, eu nasci sabendo só escrever. Nada mais!

Então, o problema nunca foi o serviço público, nunca foi a empresa em que trabalho, embora tenham lá seus problemas.

Só precisava de um meio a mais de expansão e expressão do ser. Precisava fazer literatura.

Eu necessitava, mais que tudo, escrever livros.

Ao corpo

De repente aquela entrega do corpo. Um incômodo aqui, outro ali. A moleza, o mal-estar. Não relutei. Aproveitei-me descaradamente do que a natureza me impunha: quietude.

Como o corpo nos humilha quando quer! Como a dor física nos subjuga e lembra-nos de nossa fragilidade! A impotência, enfim.

Que fazer? Descansar, medicar, deixar passar, curar-se. Morrer para renascer com mais humildade, húmus que somos. Ler “A negação da morte”, de Ernest Becker, um dos livros mais incríveis que conheço. Saber que a morte nos ronda e espreita mesmo com a tentativa de nos afastarmos dela sob o manto dos disfarces.

Obedeço ao corpo. Se ele está com sede, bebo água. Se está com fome, alimento-o. Se quer sexo, satisfaço-o. Se é sono, durmo como quem morre. O corpo não pede, exige. Não negocia, impõe-se com a força do que é vivo. Inútil tentar trapaceá-lo. Inútil negar que ele não nos manda e comanda.

Então deitei, aquietei, entreguei-me às dores, à febre, aos calafrios. Aproveitei-me para chorar os males conhecidos e os de que nem me lembro. O corpo irrigado, encharcado ecoava todas as águas que o inundavam. Não reter, não represar, não resistir. Purificar. Permiti-lo, permitir-se. O corpo informa-nos com sua sabedoria primitiva e inata.

Sou corpo. A ele, condescendência, tributo, reverência.

Conjecturas

Sempre gostei dos amores impossíveis. E eu não saberei explicar a quem me perguntar, ou a mim, a razão de tal preferência, nem mesmo se se trata de uma escolha.

Razão talvez não seja o melhor termo a utilizar quando não temos ideia do que nos conduz ou não nos conduz a algo. Desejos inconscientes de coisas irrealizáveis para que o desejo continue sendo alimentado? Conjecturas. E nada ouso afirmar.

Pode ser anseio de liberdade, vontade de preservar algo de si longe do toque do outro. Tantas coisas ou nenhuma delas.

Ando teorizando, tateando meus escuros, querendo saber de mim o que nem eu mesma posso me revelar. E por que querer saber o porquê e não me contentar em ir vivendo o que for sendo e aparecendo?

Sinto necessidade de cultivar o amor, de senti-lo e, ainda quando inventado, unilateral, ele me joga numa espécie de prazer que quer e não quer possuir o objeto por inteiro. Quero, não quero. Vou, não vou. É, não é.

Tantas vezes perdi o interesse por quem disse me amar, por quem deu provas do desejo de minha presença, do meu corpo, de mim, enfim… por quem viajou milhas ao meu encontro.

Porque sou eu quem devo estar perdida de amor. O que o outro sente é matéria intransferível, impenetrável, pertence-o e nada me acrescenta. Ao passo que se o amor é meu, tudo é meu, eu sou meu.

Quando dei por mim estava em fuga. Uma desculpa aqui, outra ali. Não, não posso. Careço olhar antes de ser olhada, desejar antes de ser desejada, amar antes de ser amada. É como se não consentisse ser alvo de alguém antes que esse alguém tenha sido previamente notado, ansiado, atraído. E mesmo quando há o encontro de vontades, elas não podem se fundir completamente.

Há sempre algo de intocável, intransponível, irrealizável e impossível que merece ser preservado.

Eu sei no mais fundo de mim que o amor não se faz a dois.